“Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Assim inicia o infortúnio de Joseph K, protagonista de um dos maiores romances da literatura. Em “O Processo”, de Franz Kafka, há a história do tormento processual sofrido pelo acusado. Não obstante a aflição que paira sobre Joseph K. durante todo o enredo da obra, tal como a que foi exposta na coluna anterior (“O Processo Penal como Pena”), tem-se ainda a dúvida constante sobre o que consistiria a acusação sofrida pelo protagonista.
Joseph K. é acusado e processado, mas não sabe sobre o quê. Que conduta teria praticado para justificar a instauração de um processo contra si? O que teria feito a ponto de fazer o Estado se movimentar e levantar armas contra si? Joseph K. é inocente e assim se diz, mas inocente de quê, é indagado? No transcorrer do livro o protagonista busca incessantemente tomar conhecimento sobre o que pesa contra sua pessoa, enfrentando diversos problemas legais que impedem de que tal ciência intentada seja alcançada. A burocracia processual impera, ocasionando as mais absurdas situações que sempre deixam Joseph K. longe de conseguir uma resposta. Dentre as diversas análises possíveis à obra, tem-se quiçá a principal delas, a saber, a celeuma dos meandros legais, das tortuosidades burocráticas e das excessivas leis que acabam contribuindo de uma maneira significativamente negativa para a clareza das coisas. No aspecto do direito penal e processual penal há bons exemplos comparativos que, de fato, evidenciam que a realidade não caminha tão distante da ficção. O que dizer de uma denúncia genérica, onde não há uma especificidade sobre em que consistiu a conduta de um denunciado para se ver acusado da imputação de determinado crime? Enquanto Joseph K. fez de tudo para tomar ciência sobre os fatos pelos quais estava sendo acusado, réus e corréus são processados num mesmo processo sem que a conduta de cada qual seja delimitada, muitas vezes inclusive sem que haja sequer o apontamento do fato que levaria a caracterizar eventual prática de crime. Enquanto Joseph K. se viu por vezes perdido num emaranhado processual burocrático, acusados custam a entender o motivo pelo qual a acusação recorre (recurso em sentido estrito – o que é isso para um acusado?) de decisões que lhes conferem a liberdade. Enquanto Joseph K. vivenciou a agonia de não saber o que estava acontecendo no processo que existia contra si, presos esquecidos nos presídios, sem defesa, anseiam por qualquer informação, por mais que mínima que o seja sobre suas situações processuais. Enquanto Joseph K. morreu tentando ter acesso aos seus acusadores, aos juízes, aos julgadores, enfim, aos responsáveis pela sua acusação, advogados e defensores enfrentam a dificuldade de se ter acesso aos magistrados, estes que resistem em falar com aqueles sob as mais diversas desculpas. No cenário do aqui, do real, da prática, o acusado sofre muitas vezes tal qual Joseph K. sofreu. Num inquérito que tramite sob sigilo em que o acesso aos autos de investigação muitas vezes é negado ao próprio advogado, o acusado fica numa situação completamente confusa. A ilogicidade do absurdo que é observada em “O Processo” também se faz presente na prática jurídica: decisões infundadas, pedidos que beiram o escárnio, condenações indevidas, atropelos de garantias, enfim, uma série de percalços que afetam o bom andamento do processo. Joseph K., como se sabe, foi condenado a morte, cuja sentença, da qual jamais tomou ciência, foi executada de maneira abrupta e desleal. O labirinto kafkiano do procedimento de “O Processo” permaneceu irresolúvel. O protagonista do romance sofreu com a agonia de não saber o que estava acontecendo durante toda a história, dada a forma da previsão e condução do processo, para que desse o seu último suspiro sem ao menos saber em que consistia a acusação. Seus últimos pensamentos, pouco antes de sua execução, foram estes: “Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?”. E assim, sem que as indagações do agora condenado Joseph K. fossem respondidas, a sentença foi cumprida. Justiça foi feita! Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Pós-graduando em Filosofia Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |