Artigo do Colunista Rafael Corrêa, sobre a democracia constitucional no Brasil, parte 2, vale a leitura! '' Fenômeno similar é identificado pelos professores da Harvard University Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que apontam com precisão que as democracias não decaem apenas pelas “mãos de homens armados”, mas também de outras formas menos dramáticas – e igualmente destrutivas: “Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subverte o próprio processo que os levou ao poder”. Por Rafael Corrêa “Recessão democrática”, “democracia iliberal” e “liberalismo antidemocrático”: um caminhar na “contramão da liberdade”.
É lugar comum nos debates acadêmicos sobre alguns dos campos do Direito Privado (especialmente acerca do Direito Civil e Direito das Famílias) a utilização de prismas de compreensão sociológicas para o melhor dimensionamento de alguns fenômenos jurídicos. Se há “várias famílias” em lugar de apenas um modelo ou se o afeto passa a ser fonte normativa de gravitação de conceitos abertos[1], é necessário antes compreender o que se passa na sociedade para que bem se entenda como o Direito, enquanto espaço epistêmico, tem fotografado tal cenário. E muitos desses prismas de compreensão sociológica utilizados em tais debates derivam das teorizações de Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky, responsáveis, respectivamente, por estruturar as noções de modernidade líquida e hipermodernidade. A modernidade líquida, segundo Bauman, surge da metáfora ilustrativa de que as relações sociais mostram-se muito mais voláteis e instáveis atualmente, como materiais líquidos movendo-se aos limites de seus respectivos recipientes. Se antes se poderia pensar em uma modernidade sólida (onde conceitos rígidos ditavam as relações mantidas), hoje há uma pluralidade que deflui de uma liberdade por vezes convertida em individualismo, fenômeno que implica na abertura da fluidez do nosso tempo, “derretendo” padrões e formas de compreensão sobre nossas relações intersubjetivas e institucionais[2]. Leitura um tanto similar é realizada pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky, que a partir das noções da sociedade risco e da outra modernidade (pós-modernidade) relatada por Ulrich Beck, defende que hoje vivemos tempos hipermodernos. Segundo ele, passamos do pós ao hiper: tudo é mais célere, tudo é mais instantâneo, o que gera uma incompreensão do sujeito sobre o seu papel e sua correlação com as instituições que erigem o Estado (cada vez mais global) e a sociedade (cada vez mais mercantilizada e individualizada).[3] Acreditava-se que tais proposições se limitavam ao espaço da autodeterminação humana, às relações que cotidianamente travamos em sociedade e ao ponto de vista que cada um de nós nutre sobre a compreensão daquilo que nos cerca. Não mais: modernidade líquida e hipermodernidade alcançaram também a leitura que fazemos sobre Estado, mercado, política e democracia. Como bem alerta Manuel Castells, “[...] a democracia se constrói em torno das relações de poder social que a fundaram e vai se adaptando à evolução dessas relações, mas privilegiando o poder que já está cristalizado nas instituições”, o que evidencia a existência de um vínculo que expressa, ao fim e ao cabo, a ideia de confiança na representação política direta dos cidadãos nas instituições do Estado; e conclui o sociólogo espanhol: “Se for rompido o vínculo subjetivo entre o que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos [...], produz-se o que denominamos de crise de legitimidade política”, ou seja, estabelece-se“[...] o sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos representam”.[4] De acordo com Yascha Mounk, esse sentimento, em maior ou menor medida, é compartilhado por diversas comunidades e países do ocidente, onde um discurso de ordem populista (atualmente convergente a ideais conservadores comumente associados “à direita”) parece dar voz a uma parcela significativa de pessoas e grupos que “parecem estar fartos da democracia liberal em si”.[5] Citando como exemplos a ascensão de Donald Trump nos EUA, a permanência no poder de Viktor Orbán na Hungria e a ascensão de discursos antiliberais na Europa (como a crise da União Europeia e o episódio do Brexit), o cientista político Mounk identifica que as “preferências do povo são cada vez mais iliberais”, justamente pelo fato dos eleitores estarem “cada vez mais impacientes com as instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os direitos das minorias”, fator que, somado ao novo momento de dominação política pelo discurso populista acima referido, resulta no fato de que “[...] liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso sistema político, começam a entrar em conflito”[6]. Daí a concluir que, em sua reflexão, essas “preferências do povo” têm ensejado a estabilização de uma democracia iliberal (ou democracia sem direitos) e um liberalismo antidemocrático (ou direitos sem democracia).[7] Fenômeno similar é identificado pelos professores da Harvard University Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que apontam com precisão que as democracias não decaem apenas pelas “mãos de homens armados”, mas também de outras formas menos dramáticas – e igualmente destrutivas: “Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subverte o próprio processo que os levou ao poder”. Em alguns casos, como se sucedeu com Adolf Hitler e a estruturação do III Reich na Alemanha, a corrosão é célere; entretanto, alertam os Levitsky e Ziblatt que “com mais frequência, porém, as democracias decaem aos poucos, em etapas que mal chegam a ser visíveis”.[8] Daí que apontam a ocorrência de uma recessão democrática em diversas experiências políticas ao redor do mundo. O historiador e professor da Universidade de Yale Timothy Snyder também traz reflexões que contribuem para a ponderação desse cenário preocupante. Ao tratar da expansão de poderes de Vladimir Vladimirovitch Putin na Rússia, com especial atenção à anexação da Crimeia pela Federação Russa (e a absurda passividade com que nacionais e estrangeiros assistiram a tal episódio), bem como os constantes ataques às balizas que (de modo cada vez mais cambiante) sustentam a União Europeia, Snyder identifica a transição de um modelo de política da inevitabilidade (que enxergava o “fim da história”, empregando a expressão de Francis Fukyama sobre a vitória da democracia liberal) para um modelo de política da eternidade, onde há sempre um inimigo a ser combatido, vencido e superado, devendo o Estado ter um guia na figura de um líder dotado de força que, por meio de retórica e uso de tecnologias, acaba por desmerecer e desfazer as “conquistas de países que podem ser vistos com modelo para seus cidadãos”, difundindo uma ficção política que nega a verdade e reduz “a vida a espetáculo e sentimento”. Para Snyder, a experiência da política da eternidade no presente faz com que o povo caminhe na contramão da liberdade, termo utilizado como título de sua obra mais recente.[9] A descrição de todos esses fenômenos é de extrema importância. Talvez, boa parte daquelas e daqueles que deitarem os olhos nas linhas que a esta precedem poderão ter a impressão de que o relato supra expressa, no fim das contas, boa parte daquilo que enxergamos ao analisar a movimentação política no Brasil. Como é sabido, desde a onda de protestos havida no ano de 2013, passando pela eleição da ex-presidente Dilma Roussef em 2014; pela expansão da Operação Lava Jato no mesmo ano; pelo impeachment havido em 2016 e pelo cenário no qual se estabeleceu a eleição presidencial de 2018, o Brasil tem passado por um período de “turbulência onde a radicalização polarizada da política passou a dar o tom de todos os debates. Todos esses dados vêm agregados a uma tensão cada vez maior em nosso país entre o estamento político e os atores do Poder Judiciário, circunstância que, segundo Oscar Vilhena Vieira, convida à seguinte pergunta: está o Brasil passando por uma crise constitucional na qual “[...] os atores políticos e institucionais abdicaram de pautar suas condutas em conformidade com as regras e procedimentos estabelecidos pela Constituição, colocando em risco a própria sobrevivência do regime” ou, em lugar disso, está o país a passar “apenas” por uma crise política que “[...] tem gerado um forte impacto sobre o modo de comportamento das instituições, favorecendo condutas mais conflitivas e hereterodoxas que, embora não ameacem de morte o regime, apontam para um novo padrão de funcionamento dos sistema político criado em 1988”[10]? Sobre esse importante questionamento, seguem algumas reflexões. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor de Direito Constitucional, Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário Opet (UniOpet/Curitiba). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR). Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: [1] Sobre todos, ver: CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. [2] Nas palavras de Bauman: “O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. [...] Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade no ‘discurso da modernidade’ e está familiarizado com o vocabulário usado normalmente para narrar a história moderna. [...] Essas e outras objeções semelhantes são justificadas, e o parecerão ainda mais se lembrarmos a famosa frase sobre “derreter sólidos”, quando cunhada há um século e meio pelos autores do Manifesto comunista, referia-se ao tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade, que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar [...]. O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos poderes de derretimento da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolhas possíveis, como os estamentos hereditários com sua alocação por atribuição.” BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida [Livro Eletrônico]. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Posição 82. [3] Conforme aponta Lipovetsky: “[...] deixado a si mesmo, desinserido, o indivíduo se vê privado dos esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças interiores que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da existência. À desregulação institucional generalizada correspondem as perturbações do estado de ânimo, a crescente desorganização da personalidade, a multiplicação de distúrbios psicológicos e de discursos queixosos. Assim, a época ultramoderna vê desenvolver-se o domínio técnico sobre o espaço-tempo, mas declinarem as forças interiores do indivíduo. Quanto menos as normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o indivíduo se mostra tendencialmente fraco e desestabilizado. Quanto mais o indivíduo é cambiante, mais surgem manifestações de esgotamentos e "panes"subjetivas.”. LIPOVETSKY, Gilles. Tempos Hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004. p. 84. [4] CASTELLS, Manuel. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 12. [5] Em suas palavras: “A desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália. Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si.”. MOUNK, Yascha. O Povo Contra a Democracia. Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Posição 139. [6] Ibdem, posição 336. [7] Ibdem, posição 351. [8] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem [Livro Eletrônico]. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Posição 86. [9] SNYDER, Timothy. Na Contramão da Liberdade. A guinada autoritária nas democracias contemporâneas [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Posição 156. [10] VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. Da transição democrática ao mal-estar constitucional [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Posição 211.
1 Comment
Emerson S RODRIGUES
6/17/2020 12:46:50 pm
Muito bom professor
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