As tradicionalidades dos povos se estabelecem e passam a enraizar a solidez das interações dos seus viventes e como esses entendem as demarcações que os cercam, e, numa forma de alcançar a cidadania perante aos seus semelhantes, seguem a mesma conduta. Essas tradições remontam, em sua origem, as formações sociais instituídas a priori, em um conceito de composição que vise harmonia. Dentre essa tradição que aflora as bases culturais de determinado povo e assim, todos os enlaces que objetivam perpetuar tais costumes, estão os valores e virtudes dos componentes essenciais: os cidadãos. Tais valores são definidos por princípios intrínsecos aos iguais que se amparam em um coletivo e que tendem a buscar suas liberdades em conjunto. Como afirma Bauman, as liberdades somente podem ser asseguradas pelo trabalho coletivo e deve ser garantida coletivamente. Só que com o passar dos tempos esse legado cultural estabelecido foi perdendo sua força, numa crescente onde de globalização, liberalismo econômico e o fator preponderante do consumismo. Apesar de o consumo/mercado definir grupos delineados entre aqueles que detêm o poder de compra e os que não possuem ainda esse status, ele consegue transformar determinadas castas em prol de um consumo conspícuo excessivo. Destarte, o que se formou, hodiernamente, são classes consumidoras ou não, distintas entre si pelo poder que tem de compra, formando a nova identidade, ou seja, uma nova estigmatização. Estigma prevalece para aqueles que não possuem esse poder, formando a identidade sobremaneira bem clara de quem esta ausente do paradigma do mercado. Todas as bases tradicionais que cresceram em prol das comunidades que a cercavam, transformando seus passos, criando seus mitos e histórias hoje são ultrapassadas pelo excessivo individualismo causado tanto pelo medo quanto pela falta de perspectiva, uma vez que não há mais laços humanos, nem a apregoada solidariedade social. Em seu lugar o que se tem é a conexão e a desconexão, crescente infortúnio de uma era tecnológica que se desconecta pessoalmente, mas que tende a se associar virtualmente, negando a convivência. (Bauman) Todo esse novo conceito pulsa em uma nova e atroz perspectiva: cidadãos cada vez mais imunes aos apelos da vida em sociedade, pessoas centradas em seu ideal de medo do outro e consumo. As tradicionalidades, segundo Bauman, perdem sua força, a liquidez fulgura como novo epíteto, uma vez que os laços humanos são liquefeitos e raramente se mantem. A sensação apolítica das pessoas é crescente e não há retorno imediato a um ideário de questões publicas ou de política, isso não mais reflete os anseios de uma sociedade que acredita que já conseguiu tudo o que precisa para viver. Toda essa questão Baumaniana abre um novo conceito, ou uma nova escala na concepção de paradigmas, que se pode definir com outro pensar dos motivos que levam uma sociedade a existir, que não a coexistência e a vida em conjunto. É notável a onda de crimes econômicos e seu crescimento obteve um percentual tão elevado que chama atenção de qualquer pesquisador. Crimes que em seu fator pulsante prevaleceu o ganho individual, o lucro e a busca deste. Roubos, assaltos, grupos que se formam para cometer os crimes que deveriam estar combatendo (milícias), assaltos a bancos num contexto hollywoodiano, inúmeros projéteis que se perdem dos fuzis de traficantes que geralmente travam guerra entre si e contra grupos milicianos. Todo o crescimento dessa violência, e atentando para as formas de corrupção que também geram violência em seu resultado, é fruto de uma nova onda que tomou conta de nossa sociedade, que deliberou ser a cultura ou a tradição, os enlaces familiares e a absoluta convivência, descartáveis. O pilar essencial (capitalismo) que tornou a doença do consumismo infrene e irresponsável inerente ao ser dos dias atuais gerou uma expectativa muito grande de cada vez mais fazer parte do grupo consumidor, gerando a apolítica, a descrença e a falta de conexão. (Comte-Sponville) O que importa é o lucro para poder consumir mais depois. A descartabilidade das vidas é imensa e pode ser presenciada em todas as grandes metrópoles, se espalhando para as pequenas cidades. Todos querem fazer parte desse grupo que se consolida a cada dia, que transforma o mercado na essencial fonte de vida. Ao reunir em seus estudos as pesquisas sobre delinquência juvenil, Matza e Sykes (1964) engendraram uma forma de racionalização do comportamento desviante associada a modelos valorativos de comportamento que tendem a neutralizar os valores sociais que estão sendo irrompidos. Ou seja, o delinquente faz parte também dessa cultura e não é distinto de qualquer tradição ou costume que aflore em seu tempo. Ele é parte da situação e do status quo reinante em seu espaço. As evoluções ou involuções constantes na realidade trazem em seu teor mais marcante aspectos de interação entre os sujeitos dentro de seus laços. (Vigotski). Contudo, a expectativa já fora devidamente frustrada quando morreram as tradicionais formas de convivência, e nasceram, grosso modo, a individualização das pessoas que cada vez mais confinaram-se em seu habitat seguro, negando qualquer tipo de interação verdadeira. Em todos os aspectos nota-se o crescimento de grupos desviantes na sociedade que se apegam ao binômio delinquente/vítima rotulando-o numa mesma situação. Exemplo disso é a maneira com a qual o celerado se condiciona ao praticar um crime, caracterizando em seus atos maneiras de dissipar seu dolo e transferir suas praticas delituosas a uma aceitável conduta, ou à culpa da sociedade que não o enxerga como igual. De certo modo estão certos. As fórmulas utilizadas atualmente para a prevenção de crimes é a mais brutal possível. Negar, rotular, estigmatizar, diminuir e excluir indivíduos pode ser fatal e ao mesmo tempo o inicio de uma nova criminalização que ainda não entende os personagens envolvidos. Se todos estão fadados ao consumismo na sociedade, significa que alguns estão determinados ao novo estigma, por exclusão. Assim, negar a identidade ou a ascensão de certos grupos ou pessoas devido ao seu poder de compra é hoje o que ocorre. Viventes a margem da sociedade são todas as comunidades carentes que simbolizam os bestializados e estigmatizados que por seu pequeno poder de consumidor não conseguem passar de uma borda a outra, sempre margeando o grupo principal. Destarte, aceitá-los não faz parte da grande cidade. Assim, formas de prevenção de crimes tomam proporções gigantescas pelo Estado que precisa devido a sensação apolítica das pessoas, confirmar o seu poder pela base da força. É dessa forma que a criação de Unidades Pacificadoras ou o aparato policial demonstra a presença estatal, que deve fazer valer sua vitalidade de uma forma ou outra. A prevenção começa então cercando essas comunidades que anseiam também por consumo, que é aquilo que define, hodiernamente, o ser. Cada vez mais nota-se a acirrada presença da força coercitiva policial dentro das comunidades que vivem distantes dos grandes centros e que se posta contundentemente de uma maneira imperiosa que muito difere de sua postura no interior das cidades e dos centros. Retomando o conceito das técnicas de neutralização, crescente nas investigações de muitos crimes e nos comentários desviantes, há a exclusão da responsabilidade e a negação da ilicitude, em conjunto com a medida desproporcional do que é um comportamento nocivo. Nota-se então a criação de mais um seleto grupo que ao não conseguir irromper as bordas de sua “liberdade” volta-se contra as pessoas que fazem parte do sistema estabelecido e ainda, negam, a partir de uma rotulação que excede os limites, que estão praticando ilicitudes. Essa racionalização dos comportamentos compreende as desculpas engendradas por delinquentes no ápice de um sistema que visa apenas e não mais que o consumismo desenfreado. Lógico que o quinhão dessas pessoas está garantido também, nem que para isso tirem, numa concepção mocinho/bandido, de quem tem mais e doem a quem tem menos. Esse ato desculpante prevalece em suas concepções e conceitos formados nas sociedades que hoje existem, com a morte de uma tradicionalidade, com a perda da empatia e com o assassinato da convivência. Grupos de jovens delinquentes e pequenos infratores são encontrados perambulando pelas cidades, sem nexo ou função que não seja a de cometer pequenos ilícitos, em prol de uma pulsão apelativa muito potente: o consumo. De um jeito ou de outro, conseguem ultrapassar os obstáculos como a distância ou as barreiras policiais e dessa forma rumam aos centros das grandes metrópoles onde o capital e o consumismo giram, e lá, tentam de toda forma, fazer parte dessa vida pulsante da melhor (ou única) maneira que puderem. Esses jovens que se utilizam das técnicas de neutralização, colocando a culpa em suas vítimas, criando definições favoráveis à violação da lei, fazem parte de uma subcultura muito esquecida e arquitetada pela falta de Estado em suas vidas. Aquilo que conhecem de Estado mata e prende, tortura e demonstra seu poder a base da violência, muito bem aprendida por sinal. O motivo da criminalização em boa parte nos dias atuais ocorre por um sentido apolítico das sociedades e dos valores que estas deixam transparecer como importantes sentidos da vida. A virtude e os valores baseados em princípios se metamorfoseiam junto com o novo paradigma, com as formas da sociedade enxergar o mundo, e assim também, todos os seus personagens se modificam. Se o consumismo desenfreado aparece como uma opção muito bem delineada, ultrapassando valores éticos e morais tanto dos mercados quanto das efemeridades, então se cria e engendra novos cidadãos, cada vez mais líquidos, contendo maior fluidez em suas relações com o outro e estigmatizando qualquer um que não esteja em seus modelos de consumidor nato. Esse desencantamento traduz a essência do homem que não luta mais por seus anseios e que acredita já ter atingido o ápice de sua liberdade, enquanto poderia pelear por aqueles que dependem também de um mínimo existencial negado por um Estado que não se apresenta. Esse é o fator apolítico dos nossos dias, desenvolvendo cada vez mais a exclusão. Para aquele repelido serve o direito do Estado de penalizar, os Carandirus, Bangus e Guantánamos da vida real. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal REFERENCIAS Bauman, Zygmunt (2000) Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (1999) Globalização: as Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (1998) O Mal–estar da Pós–modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (2001) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. COMTE-SPONVILLE, André. O capitalismo é moral? Martins Fontes, São Paulo, 2005. GOFFMAN, Erwing. Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1988. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |