Em outra oportunidade, descrevi a importação de doutrinas estrangeiras sem o mínimo de adequação e cuidado como algo análogo ao delito de descaminho (aqui).
A norma penal que descreve a conduta delitiva é bastante ampla, como pode se observar nos seguintes incisos e parágrafos:
Obviamente, a analogia aqui proposta se dá em termos jocosos e provocativos. De qualquer modo, é inegável o fato de que teorias, muitas das quais ainda em fase de discussão e aprimoramento, tem sido “importadas” sem que se “pague o devido tributo”. O pagamento do tributo seria comparável ao ato de aplicar os mecanismos lógico-científicos de direito comparado, assim como efetuar a análise jurídico-sociológica de adequação dos elementos que se pretende implantar. Muitos exemplos de como esse cuidado não tem sido tomado poderiam ser citados. O que se pretende chamar atenção neste texto é o papel desempenhado pela jurisdição neste sentido. Não são raras as manifestações jurisdicionais em que o argumento de autoridade mais largamente trabalhado é a menção de teorias estrangeiras ou de “princípios” inéditos na jurisprudência. Na AP 470 ficou escancarado o fato de que muitos réus só tiverem suas condenações tornadas factíveis pelo modo como a teoria do domínio do fato foi trabalhada (às avessas de sua concepção original). Num outro exemplo, em seu voto no RE 580.252/MS, o Min. Luis Roberto Barroso faz uma longa digressão sobre o sistema penitenciário de outros países e o modo como lidam com a responsabilidade civil do Estado, para concluir sobre a maneira com o que o Brasil deverá lidar com o assunto. Caso ainda mais notório são os votos no HC 126.292/SP. Ali, muitos ministros valeram-se amplamente de critérios estabelecidos em códigos de processo penal estrangeiros para justificar a guinada de entendimento, autorizando e execução imediata da pena após condenação em segunda instância. Como se pode perceber neste último exemplo, o fenômeno aqui abordado não se limitou a teorias com impacto na aplicação de direito material, mas tem se alastrado para o processo penal. Quem sabe a maior prova disso seja justamente a extensa menção aos modelos de justiça penal negocial italiano e norte-americano com que a jurisdição tem trabalhado em épocas de colaboração premiada. Longe se está aqui de construir uma defesa em prol do isolamento dogmático ou da práxis jurisdicional. A análise de direito comparado e a troca de experiências pode ser rica e progressista em ampla medida. Afinal, não há como se pensar o estudo do direito penal e processual penal sem se alimentar generosamente do que foi e tem sido produzido fora do Brasil. O que precisa de reflexão, porém, é o modo e o momento em que a análise comparativa se dá. Assim como não é ilícito importar mercadorias, desde que se preste as devidas informações e se recolha os tributos sobre a operação, a aplicação de categorias e mecanismos de ordenamentos estrangeiros não é, em si, maléfica. Muito pelo contrário. Porém, se for feita de modo automático, como argumento de autoridade, com o intuito de substituir a necessidade de fundamentação das sentenças/acórdãos em conformidade com os nossos preceitos constitucionais e legais, essa prática se mostra antidemocrática e cínica. A questão que emerge desta consideração paira então sobre os moldes em que a apreciação das teorias e mecanismos estrangeiros se mostram legítimos em sua aplicação na prática jurisdicional interna. Ao menos três limites precisam ser considerados:
Aos limites acima elencados é possível que se façam diversas objeções. A principal delas tem que ver com um possível “engessamento” da manifestação jurisdicional, fazendo com que esta se torne mais uma vez mera “boca de lei”. Não merece acolhida este argumento. Isso porque não se está aqui afirmando que o juiz deva se apegar ao sentido “literal” da norma ou que deva se ater unicamente ao que a doutrina majoritária compreende sobre determinada situação ou elemento normativo. Também não se está querendo reificar a segurança jurídica como garantia absoluta. Antes, o que motiva a manifestação acima descrita é a necessidade de atribuir à jurisdição uma mínimo de coerência e previsibilidade. Dar a ela o espaço democrático que uma Teoria da Justiça e da Decisão Judicial compatível com o Estado Democrático de Direito exigem. Se a interpretação é sempre analogia, como ensina Arthur Kaufmann (2002), a questão sobre a base ou o critério de comparação com que se trabalha é assunto sensível, que não pode ser deixado à escolha de quem exerce o poder (punitivo no caso dos magistrados da seara criminal) A doutrina desempenha (pode e deve desempenhar) um papel fundamental. Não pode residir “descolada” da jurisdição. Precisa alimentá-la ou constrange-la. É no debate acadêmico que novas teorias e mecanismos podem ser dilapidados, enriquecidos, clarificados ou rechaçados. Mais uma vez: não ser quer uma jurisprudência refém da doutrina majoritária. O que se quer é um compromisso democrático com os espaços discursivos adequados a permitir a efetivação das garantias constitucionais relacionadas à prestação jurisdicional. Obviamente o assunto merece reflexão que ultrapassa o espaço desta coluna. Fica, no entanto, a provocação de que só teremos um poder jurisdicional democrático quando pudermos, ao estudar a dogmática (falo do direito penal em primazia), nos assegurar do que será trazido pelos magistrados como base para sua decisão. Justamente por isso a teoria do delito, com todos os seus elementos, merece continuar a ser trabalhada com cuidado pelo estudioso do direito penal e da criminologia. Conforme já elucidava há mais de dez anos o Prof. Cirino dos Santos (2005: 38):
Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado Referências: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2002. KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, W. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2002. ROXIN, Claus. Política-criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: renovar: 2002. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |