No primeiro artigo da série dividida em três “capítulos”, abordamos a urgente necessidade de mudança conceitual no que concerne o emprego do termo “ordem pública”, na prisão processual brasileira. Para quem ainda não leu, o link segue logo abaixo[1]. Vale conferir.
Pois bem, a dita mudança conceitual, esteia-se na ideia em que vivemos hoje, qual seja: A Filosofia da Linguagem tem, cada vez mais, supremacia sobre a Linguagem do Conhecimento.Cada vez mais e com mais força como ensina Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, rende-se o “mundo jurídico” ao que se não se pode afastar: o predomínio da Filosofia da Linguagem sobre a Filosofia da Consciência[2]. E o resultado disso? Um mundo sem limites. Nesses termos é que se fala tanto em limitação da ordem pública. Essa questão, portanto, envolve três importâncias: valor, verdade e liberdade. Não dá mais para substituir verdade por condições tiradas do quadro clínico paranóico de cada indivíduo (aqui leia-se Promotor de Justiça e Juiz), por óbvio, aqueles que pedem a preventiva e assim precisam justificar e aqueles que decidem, e assim, precisam justificar, ou no mínimo fazer de conta que assim o fazem, ou seja, joga-se o curinga da ordem pública à mesa. A limitação é a linha entre a verdade e o consenso, e essa linha não pode ser ultrapassada, de modo que essa lei (art. 312, CPP – requisito ordem pública), continue registrada no imaginário de cada um. “A lei sou eu”. A importância de discutir-se a filosofia da linguagem está diretamente ligada a pretensa “garantia da ordem pública”, ao passo que escorando-se nesse emaranhado argumentativo, prisões estão sendo utilizadas sem a observância da linguagem do conhecimento, sem a observância da natureza acauteladora do processo. Se prende, em nome da ordem pública para dar exemplo aos cidadãos. Se prende, em nome da ordem pública para satisfazer a “massa”. Não se prende com base na linguagem do conhecimento. E, o então chamado “alvará de prisão”, baseia-se na retórica de cada ser humano, com fins de satisfação do próprio ego, como se alguém de nós estivéssemos acima da lei. Quando tecemos a relação de ética e direito, vemos que o uso da retórica é preocupante, pois seu uso é desvirtuado. O papel da retórica se tora indispensável numa concepção de direito mens autoritária e mais democrática, nada obstante, falamos aqui de uma tese que se apresenta arbitrária e não acha nenhuma razão a seu favor, pois incompatível com a tutela processual, e, portanto, reclama, para ser aplicada e aceita, certa retórica coercitiva. Logo, a retórica que, em tese, deveria ser utilizada para motivar as decisões dos juristas, está sendo utilizada para as impor de forma autoritária[3]. Esse discurso se distancia cada vez da lei processual penal e da Constituição da República Brasileira, dando voz a essa verdade “falada”, a uma estrutura processual que somente existe “na cabeça”. E na cabeça, a verdade grita e o curinga é utilizado, com a desculpa de estarem fazendo justiça. Justiça para quem? Fato é que, quanto mais se estuda, mais se vê que tanto a doutrina quanto a jurisprudência não são suficientes para aclarar a subjetividade (e ambiguidade e inconsistência) da norma – art. 312 – a despeito desse critério “falado” sem qualquer pretensa fundamentação – linguagem do conhecimento - para o decreto prisional, medida que deveria ser extrema no famigerado Estado Democrático[4], mas não é assim. Para aqueles que dizem que o Brasil não prende. Cada vez se prende mais. Cada vez está mais difícil de soltar, e se prende errado. Na grande maioria das vezes (falo aqui do que vejo na prática), a prisão está ancorada na ordem pública. Roberto Lyra Filho afirma:
Referida ideologia permeia sob o mantra “ordem pública”, que de tanto afirmá-lo, mesmo que sem forma e conteúdo definido, tornou-se meio eficaz para antecipar a pena, ou seja, ordem pública é construída com pura ideologia, linguagem, deformações de raciocínio, uma crença falsa que traduz a deformação inconsciente da realidade[6]. Os vícios ideológicos do judiciário claramente não servem ao direito, pois a imagem mental que vem sendo criada, e com sustância, se difere da realidade das coisas[7]. Afinal, “com tinta escreve-se qualquer coisa[8]”, e vivemos em um tempo de despreocupação com a verificação daquilo que se escreve e que se fala, ou seja, a retórica predomina ao conteúdo, deixando de lado os instrumentos de verificação (investigação do argumento utilizado). É importante dizer que equipara-se a ordem pública como fundamentação para prender preventivamente ao suplício narrado por FOUCALT, aqui não entendido como o corpo dos condenados, pois não falamos em condenados, mas em um espetáculo público bastante violento[9]cometido contra aqueles que ainda são dotados do estereótipo de cidadão comum. Dentro desse contexto, SANGUINÉ alude que a ordem pública se tornou sinônimo de segurança à sociedade, bem como o meio acautelador que se camufla sob as funções de prevenção exercidas somente pela pena e não prisão provisória[10]. O autor também faz um alerta: O conceito invocado como justificativa das medidas necessárias para assegurar a manutenção da paz pública e a convivência ordenada dos cidadãos dentro dos grupos sociais - cambiando apenas a intensidade com que aplicado -, permanece na ordem do dia no século XX, tanto para as ditaduras como para os regimes democráticos liberais[11]. É como, na época da inquisição: Queimem as bruxas, afinal elas representam risco à ordem pública, simplesmente por serem bruxas. Desta feita, conclui-se que se age em nome do processo penal, nada obstante em contradição ao direitoprocessual penal. Assim, faz-se forçosa à busca por um conceito concreto, limitador, válido, de modo a eliminar essa ausência de critérios que são aceitos para fundamentar prisões ideológicas e inverificáveis. No mesmo barco aparece a livre docência de ZANOIDE de Morais, o qual deixa claro que a ordem pública somente pode ser sanada, já que repleta de vícios, por meio de uma nova hermenêutica que a discipline à luz dos direitos e garantias fundamentais preconizados pelo legislador originário de 1988[12], a luz do princípio da legalidade. Por mais estranho que pareça. Vivemos na mais pura falta de consciência constitucional. E a necessidade de adequar a ordem pública com os preceitos da Carta Cidadã já não pode mais esperar. O coringa deve ficar fora do baralho! A conveniência do julgador por meio da ampliação dos poderes discricionários para punir, através de uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado equipara-se a Estado ditador. A origem argumentativa da ordem pública remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazi fascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender.[13]Esse é o tal “alvará de prisão”. Como se não bastasse, a “anemia semântica”[14]que circunda a ordem pública é completamente inverificável, o que torna esse fundamento irrefutável. Se alguém é preso para garantia da ordem pública, considerando o suposto modus operandi, empregado no suposto crime, uma vez efetivada a prisão, o (pseudo) risco desaparece, sendo assim inviável refutá-lo, pois o argumento construído com base em ilações, falácias e ideologia some por completo. A prisão engole a fundamentação e assim a custódia cautelar assume os contornos de pena. Por essa razão, acredita-se que a delimitação e, portanto, superação dessa ideologia, é mais que necessária, é indispensável. Só assim poderemos vivenciar um processo penal válido, ou seja, constitucional. Assim, tudo não passa de mera retórica, com um único fim: justificar a prisão sob qualquer argumento, a qualquer preço. E, então o processo penal vai se perdendo, enquanto que as subjetividades de cada indivíduo, e a retórica autoritária, ganham cada vez mais força. Mariana Coelho Cantú Mestranda em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Academia de Direito Constitucional - ABDCONST Graduada em Direito pela Universidade Positivo Advogada Criminal [1]http://www.salacriminal.com/home/jurisdicao-penal-com-os-pes-de-barro-ordem-publica-no-imaginario-sistema-punitivista-brasileiro-parte-01. [2]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e psicanálise: interlocuções a partir da literatura. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. [3]PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2996, p. 469-558. [4]SOUZA. A.P. Ordem Pública e Prisão Preventiva. 2017. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/ordem-publica-prisao-preventiva/. [5]LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Editora brasiliense, 11ª ed. Primeira edição, 1982, pg. 9 -10. [6]Fazemos menção ao termo ideologia aqui, como aquele trazido por Lyra Filho em sua obra “O que é Direito?” A expressão ideologia será tratada nessa pesquisa como na teoria crítica lyriana, ou seja, a falsa consciência de um discurso competente que corrompe a ciência para servir de dominação social dos “donos do poder” - LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Editora brasiliense, 11ª ed. Primeira edição, 1982, Cap. 2. [7]LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Editora brasiliense, 11ª ed. Primeira edição, 1982, pg. 7 -15. [8]BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. [9]FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. Pg. 09. [10]Idem 10. [11]SANGUINÉ, Odone.Prisión provisional y derechos fúndamentales.Tirant: Valencia,2003. p. 171. [12]MORAES, Maurício Zanoide de. Ordem pública e presunção de inocência: possível compatibilização apenas em um novo sistema processual penal e por meio de uma nova hermenêutica. Temas para uma perspectiva crítica do Direito - Homenagem ao Professor Geraldo Prado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, v. , p. 727-749. [13]LOPES JR., Aury. Direito processual penal.10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. [14]MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. p. 26. [15] Comments are closed.
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