Nos dois primeiros textos da “série” dividida em três “capítulos”, abordamos a urgente necessidade de mudança conceitual no que concerne o emprego do termo “ordem pública”, na prisão processual brasileira, considerando o abismo argumentativo em que se inseriu esse curinga ligado intimamente a retórica no direito processual penal, a qual não observa a linguagem do conhecimento e cada vez mais se satisfaz com a filosofia da linguagem.
Para quem ainda não leu, os links seguem logo abaixo[1]. Vale a pena conferir. O risco à ordem pública, aventado demasiadamente por julgadores, na verdade é o risco da ordem pública. O perigo que esse termo com significado desconhecido representa à ordem pública é perceptível de plano, e não pode mais ser negado, pois aqueles que cometem crimes, em tese, fazem parte da tal ordem pública até que sejam considerados culpados e recebam uma pena. Não se fala aqui em abolicionismo, ou desencarceramento. O objeto discutido é a prisão cautelar e a falta de cautelaridade que esse termo está sendo inundado. A definição recorrente de risco para a ordem pública somente existe nesse vão legislativo que se confunde com argumentos apelativos e não jurídicos. Por isso enquadra-se o tempo todo ordem pública como “clamor social”, “perturbação da paz”, gravidade ou brutalidade do crime; credibilidade das instituições? Ou seja, como se o sistema no ato de não prender não exercesse sua função, logo para prender vale uma miscelânea pura de motivações contrárias a natureza da prisão preventiva. A confusão mais comum que se vê é a equiparação de ordem à opinião pública, como nos tempos da forca, em que a sociedade clamava pelo enforcamento de um sujeito tido como criminoso, e assim o Estado executava. Isto é, a questão processual é levada ao lixo, a prisão cautelar é regra e a inquisição ressuscita, logo vigora. Esse contexto já seria suficiente para a delimitação desse ideal tão problemático. Todavia, talvez o embate mais grave e urgente se concentre no seguinte fato já delineado nos textos anteriores: A fundamentação utilizada para decretar-se a prisão preventiva assume contornos de pena antecipada, violando o devido processo legal. Parece que o fato das funções de prevenção geral e especial e retribuição que são exclusivas de uma pena, que supõe um processo válido e uma sentença transitada em julgado, as quais em nenhuma hipótese podem ser buscadas na via cautelar, tornou-se esquecido ou o que é pior, ignorado pelo tal “coringa” ou “décimo segundo camelo”, como refere-se Niklas Luhmann[2], àquelas decisões judiciais que não tem solução, ou seja, o que não tem remédio, remediado está. A história do décimo segundo camelo se perfaz interessante, ao passo que diz respeito a fundamentação do direito, das manifestações e decisões judiciais. Luhmann parte de um clássico conto da literatura árabe. Resumidamente, a estória é a de um rico beduíno que possuía muitos camelos e testamentou a sucessão de seu patrimônio (camelos) a seus três filhos. O mais velho, Achmed, deveria ficar com a metade, o segundo, Ali, com um terço e Benjamin, o terceiro, por sua vez, com um sexto. Sucede que o pródigo pai dilapidou seu patrimônio, sobrando, ao final, apenas onze camelos para a partilha. Pela inexatidão da divisão entre o número total de camelos na proporção de cada herdeiro, haja vista a impossibilidade de solução, o caso foi parar nas mãos de um juiz que o resolveu da seguinte maneira: “empresto-lhes um camelo e, se Alá quiser, vocês me devolverão o mais rápido possível.” Naturalmente, com mais um camelo, o caso foi facilmente liquidado, nada obstante, esse décimo segundo camelo não pertencia a herança, era algo externo. Assim, Ali ficou com seis, Achmed com três e Benjamin com dois, conforme quisera o falecido progenitor. Além disso, sobrou um camelo para que fosse devolvido ao juiz. Utilizando-se da ilustração, passa-se às elucubrações. Formulada uma série de questionamentos acerta da função do décimo segundo camelo e sua pertinência ao sistema jurídico, Luhmann conclui, preliminarmente, ser ele ao mesmo tempo necessário e dispensável. O décimo segundo camelo, por ora, é tido como a fundamentação, por alguns como legitimidade, mas conclui por afirmar que a função precípua do décimo segundo camelo é a de simbolizar a positividade do direito. Ou seja, seu escopo é o garantir a efetividade das decisões. Não obstante, há outro viés, o qual de fato nos interessa nessa “série”. Dado que o décimo segundo camelo é trazido ao direito como algo externo, diferentemente da fábula, a tendência dos juristas é a de não devolvê-lo. Segundo o próprio professor, é ínsito ao sistema jurídico apoderar-se de fundamentos que inicialmente não pertencem a ele como modo de justificar suas decisões. Assim, aqui, o décimo segundo camelo seria o curinga tão falado nessa “série”, aquilo que não existe no direito, precisamente o não-direito que torna-se direito, considerando a preponderância da retórica sobre a linguagem do conhecimento. Justifica-se, então, a ordem pública sem precisar validá-la com o direito em que ela está inserida, de ordem cautelar, logo, faz-se a todo o momento um não-direito. Sob essas condições, obviamente constata-se que a ordem pública, como é aplicada nos dias de hoje, não é cautelar, ou seja, não tutela o processo, sendo, portanto, inconstitucional. Busca-se muito mais que segurança jurídica. Um conceito concreto de ordem pública é sinônimo de constitucionalidade, respeito aos direitos fundamentais e ao Código de Processo Penal e a sua própria natureza (fins puramente cautelares). Direito não se faz com formações puramente ideológicas. Em sua essência é preciso de novas manifestações e decisões quem abandonem o décimo segundo camelo, ou seja, ordem pública respeite o princípio da legalidade e atue como garantidora da cautelaridade do processo. Algo tão simples quanto justo, mas que vem sendo destruído a cada dia. Mariana Coelho Cantú Mestranda em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Academia de Direito Constitucional - ABDCONST Graduada em Direito pela Universidade Positivo Advogada Criminal [1]http://www.salacriminal.com/home/jurisdicao-penal-com-os-pes-de-barro-ordem-publica-no-imaginario-sistema-punitivista-brasileiro-parte-01. http://www.salacriminal.com/home/jurisdicao-penal-com-os-pes-de-barro-ordem-publica-no-imaginario-sistema-punitivista-brasileiro-parte-02. [2]Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-mai-12/decisoes-juridicas-levar-serio-valores-principios-constitucionais. Comments are closed.
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