Justiça, e afinal, o que é justiça? Essa é uma das primeiras indagações feitas a todos os acadêmicos e acadêmicas de Direito quando ingressam na faculdade, sendo um questionamento complexo por si só. Complexo pois justiça é dotado de subjetividade, e portanto, o que é justiça para um indivíduo, pode não ser para outro, ensejando inúmeras reflexões.
Um exemplo que pode ser utilizado para iniciar essa reflexão, é o de um bonde desgovernado, citado no livro de Michael Sandel, Justiça, o que é fazer a coisa certa, no qual ilustra:
Diversos exemplos como esse podem ser citados, denotando a dificuldade de conceituar o que efetivamente é a justiça. Nesse sentido, é vislumbrado outros dilemas morais que surgem pois não sabemos como os eventos ocorrerão. Exemplos fictícios como a história do bonde geram uma reflexão e incertezas sobre as escolhas cotidianas de nossas vidas[2]. Após a indagação do que seria justiça com o exemplo mencionado, passa-se a análise feita por Hannah Arendt, no qual aduz em seu livro A condição humana, que a justiça como virtude estava no terreno da ação; agindo os homens estabelecem uma teia de relações que, embora intangível, é ‘’tão real quanto o mundo das coisas que visivelmente temos em comum’’[3]. Ao agir, como se viu, o homem revela-se, e o caráter de revelação da ação e do discurso é que lhes dá relevância humana. Ao agir com virtude o homem distingue-se dos demais, em sua identidade inconfundível. Em razão da existência dessa teia de relações é que a ação produz histórias. Essas histórias revelam um agente, que entretanto não é seu autor nem produtor[4]. É nessa teia de relações que se manifesta quem alguém é[5]. Nesse sentido, a justiça compreendida como virtude foi perdendo elementos da realidade. A tradição foi rompida, e a autora entende que não é possível reatá-lo. A virtude da justiça evadiu-se da experiência humana quando deixou de ser vivida como algo ligado ao aperfeiçoamento, à excelência da ação, passando a ser vislumbrada como um valor entre outros valores[6]. A transformação correspondeu, à assimilação a fabricação. No mundo do homo faber, a justiça já não era vislumbrada no agir, mas era um valor, um bem de uso, ‘’uma mercadoria social que podia circular e se converter em moeda de troca de toda a espécie de valores, sociais e individuais’’[7]. Sendo assim, quando o julgamento dos produtos em termos de utilidade ultrapassa a esfera da fabricação, generalizando-se, todas as coisas tornam-se valores. A justiça torna-se um valor entre os demais valores, conforme são almejados os fins como mais valiosos. Ao ser regida pelos critérios do homo faber, a justiça perde seu valor intrínseco, deixando de orientar sua ação e manifestar-se nela, para ser um valor que pode ser substituído por outro, de acordo com os fins almejados[8]. Vivemos em um momento delicado, no qual em demasiadas decisões, primordialmente na esfera criminal, é notável a discrepância e falta de razoabilidade nas decisões. Um exemplo que ganhou notoriedade foi o caso de Rafael Braga, condenado no dia 20 de abril de 2017 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a 11 anos e 3 meses por tráfico e associação ao tráfico de drogas, pela detenção de 0,6 gramas de maconha e 9,3 gramas de cocaína[9]. Em contrapartida, o filho de uma Desembargadora, detido em abril com 130 quilos de maconha no Rio Grande do Sul, está livre e a defesa alegou que o mesmo deveria ser internado numa clínica psiquiátrica, pois possui a denominada síndrome de borderline[10]. Outro caso muito delicado ganhou notoriedade, retratando a situação das crianças e adolescentes em conflito com a lei, no qual um Defensor Público de São Paulo elaborou uma petição aduzindo os problemas estruturais e a desigualdade no país. Na petição, após pedir a extinção das medidas socioeducativas pelo óbito do adolescente, o mesmo enfatizou:
Exemplos cotidianos não faltam para demonstrar a ausência de igualdade e razoabilidade nas decisões judiciais, o que contribui para o aumento exacerbado de pessoas no sistema carcerário brasileiro. Segundo recente levantamento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tornou-se o país com a terceira maior população carcerária do mundo, com base nos dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais do King’s College de Londres, na Inglaterra, com aproximadamente 715,6 (setecentos e quinze mil e seiscentos mil) presos[12]. De fato, buscar a igualdade na sociedade atual torna-se cada dia mais difícil, mas como operadores do Direito, é fundamental lutar pelo equilíbrio e pela minimização dessas disparidades. Arendt aduz: ‘’ toda nossa existência se assenta, afinal, em uma cadeia de milagres’’[13]. Os homens dotados do dom da ação, também podem realizar milagres, entendidos como interrupções de uma série de acontecimentos, de algum processo automático em cujo contexto constituem o absolutamente inesperado. Como o dom da liberdade não some nunca, o homem pode sempre vir a quebrar a cadeia das infinitas improbabilidades. Por isso é que a reflexão de Arendt é dominada pela esperança[14]; para a autora, mesmos nos tempos mais sombrios, temos o direito de esperar alguma luz[15]. Por fim, em tempos de discursos de ódio generalizados, e da ânsia punitiva de grande parcela da sociedade, é fundamental lutar para garantir um ambiente mais equilibrado e justo a todos os indivíduos. Neste diapasão, há uma frase de Bertold Brecht que aduz: ‘’ Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente; não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar’’. Paula Yurie Abiko Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano FAE, 8º período Estagiária do Ministério Público Federal Membro do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal Referências bibliográficas: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio d’água, 1991. RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios, a justiça no pensamento de Hannah Arendt, editora UEPG, 1ª edição, 2010. SANDEL, Michael. Justiça, o que é fazer a coisa certa. Editora civilização brasileira, Rio de Janeiro. http://www.diariodocentrodomundo.com.br/rafael-braga-tem-recurso-negado-em-segunda-instancia-na-justica-do-rj-e-tera-que-voltar-a-prisao/ , acessado em 14 de dezembro de 2017. http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/filho-de-desembargadora-preso-por-trafico-de-drogas-e-solto-no-ms.html, acessado em 14 de dezembro de 2017. http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI255077,41046-Defensor+pede+extincao+de+medida+socioeducativa+de+garoto+morto+e, acessado em 14 de dezembro de 2017. https://www.conjur.com.br/2014-jun-05/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-segundo-estudo, acessado em 14 de dezembro de 2017. [1] SANDEL, Michael. Justiça, o que é fazer a coisa certa. Editora civilização brasileira, Rio de Janeiro, p. 30 e 31. [2] [2] SANDEL, Michael. Justiça, o que é fazer a coisa certa. Editora civilização brasileira, Rio de Janeiro, p. 33. [3] ARENDT, Hannah. A condição humana. p. 195. [4] ARENDT, Hannah. A condição humana. p. 199. [5] ARENDT, Hannah. A condição humana. p. 198. [6] RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios, a justiça no pensamento de Hannah Arendt, editora UEPG. p. 156 [7] ARENDT, Hannah. A crise da cultura, p. 256. [8] RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios, a justiça no pensamento de Hannah Arendt, editora UEPG. p. 156 [9] http://www.diariodocentrodomundo.com.br/rafael-braga-tem-recurso-negado-em-segunda-instancia-na-justica-do-rj-e-tera-que-voltar-a-prisao/ , acessado em 14 de dezembro de 2017. [10] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/filho-de-desembargadora-preso-por-trafico-de-drogas-e-solto-no-ms.html, acessado em 14 de dezembro de 2017. [11] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI255077,41046-Defensor+pede+extincao+de+medida+socioeducativa+de+garoto+morto+e, acessado em 14 de dezembro de 2017. [12] https://www.conjur.com.br/2014-jun-05/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-segundo-estudo, acessado em 14 de dezembro de 2017. [13] ARENDT, Hannah. Que é liberdade, p. 220. [14] RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios, a justiça no pensamento de Hannah Arendt, editora UEPG. p. 171. [15] ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio d’água. 1991, p.10. Comments are closed.
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