LEGALIZAR, DESCRIMINALIZAR, OU LIBERAR OS ENTORPECENTES ILÍCITOS – VOCÊ SABE QUAL A DIFERENÇA?8/7/2018
No Brasil, a produção, comercialização e utilização de substâncias entorpecentes consideradas ilícitas, são consideradas como crimes. Importante salientar que o uso de entorpecentes, mesmo com a edição da lei 11.343/06 continua sendo definido como crime, sendo que o que ocorreu foi a despenalização do uso conforme assentou o posicionamento do o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário número 430105 do Rio de Janeiro, no dia 13 de fevereiro de 2007.[1]Ainda, houve também a criação de um Enunciado do FONAJE que assim determina: “ENUNCIADO 94 – A Lei nº 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de posse ilegal de drogas para uso próprio (XXI Encontro – Vitória/ES)”[2]
Assim, muito se debate hoje acerca das possíveis soluções para diminuir a violência em decorrência da Política de Proibicionista em torno dos entorpecentes ilícitos, sendo mencionado por diversas vezes a liberação, a descriminalização ou a legalização como possíveis alternativas para a diminuição de tal violência. Contudo, muitas pessoas pensam que a legalização, descriminalização e liberação do uso de entorpecentes são a mesma coisa, porém são extremamente diferentes e com consequências diferentes, vejamos. Vamos começar pela liberação do uso de entorpecentes. A liberação do uso de substâncias entorpecentes, na verdade, é a ausência total de um controle sobre a utilização, bem como a ausência de um controle do Estado sobre as substâncias conhecidas hoje como drogas ilícitas e o usuário. Ou seja, a liberação de entorpecentes pode ser entendida como a utilização irrestrita das substâncias hoje tida como ilícitas, sem qualquer intervenção estatal, seja na esfera penal, administrativa ou cível. Ou seja, a liberação dos entorpecentes compreende uma ausência de regulamentação por parte do Estado, passando a ser considerada uma conduta comum e cotidiana na vida das pessoas. A descriminalização pode ser compreendida como o ato de uma conduta ou atividade ser retirada da competência do Direito Penal ou assunto de matéria criminal, não significando, contudo, que aquele ato ou conduta não possa ser atribuída uma sanção ou mantida a sua ilicitude, porém tal sanção ou ilicitude será objeto de outra seara do direito, podendo ser de matéria administrativa, cível e etc., mas não penal. Desta forma, o ato de descriminalizar, significa que uma conduta ou ato, antes sob a tutela penal, poderá passar a ser de tutela de outro ramo de Direito, sendo que àquele comportamento não será mais de competência de legislação criminal ou de competência da Justiça Criminal. Ainda, é possível a descriminalização de uma conduta, sem que, no entanto, seja estabelecida uma nova sanção e/ou seja transferida a matéria para outras searas do Direito. Por sua vez, a descriminalização pode ocorrer por duas vias segundo HULSMAN: (...) o ato e a atividade pelos quais um comportamento em relação ao qual o sistema punitivo tem competência para aplicar sanções é colocado fora da competência desse sistema. Assim, a descriminalização pode ser realizada através de um ato legislativo ou de um ato interpretativo (do juiz)[3] Assim, a descriminalização de algum ato ou conduta podem ocorrer pela via judicial ou pela via legislativa. Segundo CARVALHO, na via legislativa, a descriminalização de uma conduta comporta três processos distintos, sendo a descriminalização legislativa em sentido estrito, na qual a lei ou tipo penal incriminar é abolido (abolitio criminis); a descriminalização parcial, substitutiva ou setorial, que é aquela na qual aquela conduta é transferida para outro ramo do Direito, sem ser o Direito penal, sendo mantida a sua ilicitude, porém não penal, bem como a alteração de critérios sancionatórios, com uma maior flexibilização. [4] Pela via judicial, o processo de descriminalização é realizado através dos magistrados, quando da analise da norma, verificam a inconsistência da norma penal com os princípios e dispositivos constitucionais, e, assim, a norma penal deve se adequar ou ser extinta do ordenamento jurídico quando em confronto com o Direito Constitucional. Neste sentido, BARROSO afirma: (...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não lhes aplicando automaticamente e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.[5] Desta forma, em caso da legislação ordinária ou norma penal afrontar os dispositivos Constitucionais, é que entra em cena a possibilidade da descriminalização de determinada conduta, sendo um exemplo o Recurso Extraordinário 635659/SP que está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal a possível descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, bem como uma possível sinalização de uma descriminalização seguida de regulação conforme voto do Ministro Luís Roberto Barroso, no qual procurou estabelecer o critério de 25 gramas de maconha, ou até seis plantas fêmeas como critério definidor na diferenciação entre usuário e o traficante. Com relação ao fenômeno da legalização, pode-se anotar que, primeiro pode-se passar pela descriminalização da conduta originalmente considerada como criminosa, bem como após ser legalizada a conduta, estabelecendo de critérios normativos e controles a serem exercidos por parte dos órgãos do Estado. O processo de legalização importa na atuação estatal ou derrogação ao poder privado na atuação de fiscalização, produção, e demais atuações em torno da conduta antes proibida pela norma penal, ou seja, pode-se retirar do âmbito penal determinada conduta, e, após haverá um processo de regulação em torno daquela atividade, estabelecendo limites e sanções ao seu descumprimento, como exemplo o álcool e tabaco, sendo que as suas produções são legais e realizadas pela iniciativa privada, porém devem atender uma série de exigências estabelecidas em lei. Neste ponto, é importante anotar que o processo de legalização não importa necessariamente em uma descriminalização total, pois o processo de legalização ainda poderá manter como crime a conduta anteriormente definida em lei, explicamos. Utilizando o exemplo do tráfico de drogas, pode-se legalizar a venda e consumo de entorpecentes, porém ainda manter a criminalização em torno da venda de entorpecentes não autorizada, pois o processo de legalização importará na regulação da produção e venda com determinadas restrições, como a licença concedida pelo Estado, qualidade e quantidade de substância, estabelecimento de demais regras necessárias, bem como estabelecer a quantidade de porte para consumo. Um exemplo de um fenômeno de legalização, cujo o transporte ou atividade fora dos tramites legais estatais poderá ensejar a responsabilização criminal, pode ser dado ao tabaco, sendo que a importação ou exportação clandestina de produtos que dependem de registro, análise ou autorização de órgão público competente, poderá configurar o crime de contrabando previsto no artigo 334-A do Código Penal. Ou seja, nada impede que o Estado conceda a outorga de direitos de produção e comercialização de substâncias hoje tidas como ilícitas à iniciativa privada, ou tome para si tal função, com a devida regulação de produção, compra e venda, porém mantenha como criminosa a conduta de tráfico de entorpecentes cujo o exercício é feito sem regulamentação legal ou outorga legal. Veja que uma Política Criminal semelhante a mencionada anteriormente é adotada quando se trata da produção e comercialização de remédios ou produtos destinados a fins terapêuticos e até mesmo produtos cosméticos, vez que a sua produção e venda são permitidas no Brasil, desde que esteja dentro dos padrões exigidos pela lei, e, caso contrário, poderá incidir nas disposições do artigo 273 do Código Penal, que assim estabelece: Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa § 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. § 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico § 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V - de procedência ignorada; VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente. Assim, sucintamente, pode-se dizer que a liberação é a retirada da conduta como crime, bem como a ausência total de controle sobre a conduta liberada. Já na descriminalização, ocorre a retirada da conduta do âmbito da tutela penal, seja pela via legislativa, seja pela via judicial, na qual aquela conduta não será mais definida como crime, podendo ser submetida a tutela de outras áreas do Direito, bem como estabelecidos sanções, não impedindo, contudo, uma regulação daquela conduta. Na legalização, há um processo de regulação e regulamentação de produção e comercialização da substância, podendo ser exercida pela iniciativa privada quando da permissão pelo Estado, não significando, contudo, que aquela conduta deixará de ser considerada como crime quando realizada em desacordo com a regulação e normas legais estabelecidas em lei. Mas por que devemos falar em legalização/descriminalização das drogas? Confira aquium artigo que já escrevemos para a presente coluna. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Mestrando em Direito pela Uninter Referências Bibliográficas: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva. 1999. BRASIL. ENUNCIADO 94 DO FONAJE. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-criminais> Acesso em 06/08/2018 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Nº 456. STF. MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. 12 a 23 de Fevereiro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo456.htm#> Art. 28 da Lei 11.343/2006 e Despenalização. O órgão colegiado decide sobre o art. 28 da lei 11.343/2006 sobre divergências doutrinárias a respeito da criminalização do usuário, sendo adotado o critério de despenalização prisional e não uma descriminalização do uso. Como relator o Min. Sepúlveda Pertence. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2013. [1]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Nº 456. STF. MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. 12 a 23 de Fevereiro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo456.htm#> Art. 28 da Lei 11.343/2006 e Despenalização. O órgão colegiado decide sobre o art. 28 da lei 11.343/2006 sobre divergências doutrinárias a respeito da criminalização do usuário, sendo adotado o critério de despenalização prisional e não uma descriminalização do uso. Como relator o Min. Sepúlveda Pertence. [2]BRASIL. ENUNCIADO 94 DO FONAJE. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-criminais> Acesso em 06/08/2018 [3]CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil.6ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2013. P. 193 apud HULSMAN, Louk. Descriminalização. Revista de Direito Penal (09/10). Rio de Janeiro: Forense. 1973. P. 07. [4]CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil.6ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2013. P. 195. [5]BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva. 1999. p. 70 e 71. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |