![]() Artigo da Colunista Paula Yurie Abiko sobre a lei antiterrorismo e a criminalização de movimentos sociais, analisando o recente projeto de lei nº 3019/2020, vale a leitura! ''Portanto, é fundamental que a sociedade em totalidade reflita sobre essas mazelas sociais, e primordialmente sobre a história, para não repetirmos os mesmos erros. Sendo assim, em momentos nos quais é negado a essas pessoas mínimas condições de existência e subsistência, naturalmente haverá uma reação, e eis a legitimidade dos movimentos sociais''. Por Paula Yurie Abiko O momento atual é delicado pois além da pandemia global do COVID 19, os problemas sociais que permeiam a sociedade infelizmente estão muito presentes, o machismo, racismo, homofobia e as desigualdades sociais em suas variadas mazelas.
O recente caso norte americano de George Floyd, homem negro que fora morto pela polícia de forma cruel, levantou a tona o tema do racismo estrutural e institucional na sociedade em totalidade, pois trata-se de um problema mundial. No Brasil, vale ressaltar alguns pontos históricos importantes para compreender porque o racismo é tão presente em nossa sociedade, e porque a luta antirracista é tão fundamental. Djamila Ribeiro na obra: pequeno manual antirracista (2019, p. 107), ressalta a importância que a sociedade tem de lutar contra o racismo, aduzindo que:
Isso, pois, analisando a história de abolição da escravidão, e conforme aduz a historiadora Lilia Schwarcz, o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Este fato, obviamente, traduz o racismo estrutural presente na sociedade brasileira, e é um reflexo quando analisamos o sistema prisional brasileiro, no qual mais de 70% dos indivíduos privados de liberdade são pretos ou pardos, conforme os dados do INFOPEN. Portanto, é fundamental que a sociedade em totalidade reflita sobre essas mazelas sociais, e primordialmente sobre a história, para não repetirmos os mesmos erros. Sendo assim, em momentos nos quais é negado a essas pessoas mínimas condições de existência e subsistência, naturalmente haverá uma reação, e eis a legitimidade dos movimentos sociais. A Lei Antiterrorismo possui como fundamentação em diversos países do mundo, alguns atentados terroristas que preocuparam a sociedade como um todo. Um dos maiores exemplos foi o atentado em setembro de 2001 contra as torres gêmeas nos Estados Unidos (LOPES; SANTOS JR., 2018, p. 588). O maior problema observado na promulgação das legislações que visam a coibir atentados terroristas é a deturpação de suas funções, enquadrando movimentos sociais legítimos como terroristas. Um exemplo foi o que ocorreu com o grupo indígena Mapuche, no Chile, no qual posteriormente observou-se a ilegalidade do ocorrido perante esse grupo social, sendo condenados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme ressaltam LOPES e SANTOS JR. (2018, p. 588). No Chile, a Lei Antiterrorismo nº 18.314/1984, aplicada aos integrantes indígenas do grupo Mapuche por ameaças de incêndio, fora questionada por diversas entidades de proteção de direitos humanos pela abrangência que foi dada a respectiva legislação. Os Mapuches constituem 10% da população chilena, e os conflitos foram gerados primordialmente por conflitos de terra. Reconhecendo esse erro, em 1993 o governo chileno aprovou a Lei nº 19.253, com o objetivo de melhorar as condições de vida da população indígena, possibilitando a devolução das terras (LOPES; SANTOS JR., 2018, p. 598). A lei antiterrorismo nº 13.260/2016 e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro No Brasil, a Lei nº 13.260/2016 foi criada regulamentando o artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal e disciplinando o que seria caracterizado como terrorismo. A tipificação do que seria os atos terroristas estão dispostos no artigo 2º e seus parágrafos seguintes. O problema da lei, apontado por diversos doutrinadores, é a vagueza hermenêutica do que seria de fato um ato de terrorismo, pois o artigo 2º, parágrafo 1º, inciso I da Lei Antiterrorismo possibilita uma interpretação da forma que acharem conveniente. Nesse sentido, ressaltam VERONEZI e COELHO, (2018, p. 153): Além disso, o que torna tudo mais emblemático é o fato de o tipo de objeto considerado ameaçador não ser especificado no texto da lei, cabendo ao discernimento do policial decidir o que é ou não objeto ameaçador. Isso porque o simples porte de algum objeto é fato para que o indivíduo ou grupo seja investigado por ato terrorista em potencial, como, por exemplo, nas manifestações de 2013, quando diversas pessoas foram presas por “porte de vinagre”, líquido utilizado pelos manifestantes por sua suposta eficácia contra “gás lacrimogêneo’’. Essa ausência de tipificação concreta do que seria um ato de terrorismo é um grande ponto de preocupação observado os diversos abusos e ilegalidades que são cometidos contra as populações mais vulneráveis todos os dias no país. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Rafael Braga, o único indivíduo preso nas manifestações de 2013 no Rio de Janeiro, por carregar um pinho sol e uma garrafa de água sanitária, considerando o Ministério Público que os produtos iriam ser utilizados para produzir explosivos como coquetel molotov (contudo sabemos que água sanitária não possui reação química para explosão, o que é um completo absurdo). Outro ponto de questionamento é a menção do dano a qualquer bem público ou privado, que já possui tipificação no art. 163 do Código Penal. Já na lei antiterrorismo a pena para danificação de bens públicos é de 12 a 30 anos. Ressaltam, nesse sentido, SANTOS e PONZILACQUA (2017, p. 14): É nesse sentido e contexto que surge a Lei Antiterrorismo, cheia de ambiguidades e aberturas para que, convenientemente, possam ser deslegitimados e criminalizados movimentos sociais contra o poder instituído ou mesmo simplesmente críticos à políticas específicas. É absurdo que crimes comuns como saques, furtos e vandalismo sejam tratados como atos de terrorismo; Trata-se de uma evidente intimidação da sociedade e tentativa de desconstrução da cidadania duramente conquistada após vinte e um anos de regime de exceção. Os problemas sobre a lei antiterrorismo são, portanto, demasiado complexos, tendo em vista a abrangência hermenêutica e suas ambiguidades interpretativas. Análise de casos e condenações baseadas na Lei nº 13.260/2016. Em 2016 nas Olimpíadas, ocorreram prisões de suspeitos de ataques terroristas com base na lei antiterrorismo, o que gerou inúmeras discussões na doutrina, pois foram punidos por atos preparatórios. Os atos preparatórios, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, não são puníveis. Isso porque antecedem a prática delitiva e são realizados em momentos anteriores ao início da execução do delito, sendo punidos apenas quando o próprio ato em si já caracteriza um crime, como a aquisição de uma arma de fogo não permitida. As prisões baseadas na lei antiterror ocorreram no Amazonas, Paraíba, Amazonas, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. A operação foi chamada de Hashtag. Observa-se nesse sentido, a imprecisão com que fora decretada as prisões dos suspeitos de atentados terroristas nas Olimpíadas em 2016, ensejando inúmeras discussões doutrinárias sobre a sua aplicabilidade. Isso pois o artigo 2º da Lei Antiterrorismo transforma os atos preparatórios e os atos de execução em crimes autônomos, conforme ressalta LINHARES (2016). A possibilidade de criminalização dos movimentos sociais e algumas reflexões sobre o projeto de lei nº 3.019/2020 O projeto de lei nº: 3.019/2020 apresentado na Câmara dos Deputados, aduz no artigo 1º:
Sobre o fascismo, reflete o Professor da Yale University Jason Staley (2018, p. 41): ‘’Assim como a política fascista ataca o Estado de direito em nome do combate à corrupção, ela também pretende proteger a liberdade e as liberdades individuais. Mas essas liberdades dependem da opressão de alguns grupos''. Em breve análise histórica, no início da década de 30, o movimento nazista tornava-se forte na Alemanha, O KPD fundou a “Antifaschistische Aktion” (Ação Antifascista), e estava aberta a quem quisesse participar e ser oposição ao nazismo e autoritarismo imposto. Uma excelente obra lançada pelo Professor Eugenio Raul Zaffaroni, denominada Doutrina Penal Nazista: a dogmática penal alemã entre 1933 a 1945, é excelente para quem quiser se aprofundar sobre este caro e complexo tema. Ressaltando assim (ZAFFARONI, 2019, p. 75):
Tentar enquadrar no tipo penal os grupos antifascistas como terroristas, adequa-se ao que é ressaltado por Zaffaroni, na tentativa de atribuir-lhes a condição de não pessoas, e portanto, possibilitar a aniquilação e eliminação. E essa divisão entre ‘’nós’’ e ‘’eles’’ (os terroristas), pode ser muito perigosa em um período de enfraquecimento democrático como a atualidade brasileira nos evidencia todos os dias. É difícil superar a mentalidade inquisitória e o autoritarismo, em um país com uma ditadura militar que durou 21 anos. Portanto, ao ler nas redes sociais sobre o fascismo, antifascismo, anarquia e comunismo, é preciso de fato refletir se quem está propagando estas informações efetivamente leu sobre estes assuntos, pois tratam-se de termos totalmente distintos. Atualmente, a lei antiterrorismo possui em sua redação (art. 2º) que: O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. O principal ponto de questionamento do respectivo projeto de lei é sua ampliação do que seria caracterizado como atentados terroristas, possibilitando a criminalização de movimentos sociais legítimos e sendo ponto fundamental de debate na doutrina. Outro caso de criminalização dos movimentos sociais, foi o processo denominado ‘’Processo dos 23’’ no Rio de Janeiro, no qual foi instaurado um procedimento criminal em 2014 para investigar um determinado grupo que participava das manifestações, classificando os mesmos dentro da lei 12.850/2013 de organizações criminosas. Os mesmos foram condenados por dano qualificado e posse de artefatos explosivos, conforme os autos nº 0229018-26.2013.8.19.0001. Outro ponto de questionamento sobre a alteração legislativa no projeto de Lei nº: 272/2016, projeto este anterior ao projeto n:º 3019/2020, é a previsão de punição dos atos preparatórios para os crimes de terrorismo. Conforme o artigo 5º:
A referida interpretação e punição dos atos preparatórios contraria a dogmática penal no tocante ao iter criminis, punindo um fato antes mesmo da sua concretização, sem analisar a ofensividade ou lesividade e a ofensa efetiva a um bem jurídico tutelado, conforme enfatizam SANTOS e PIEDADE (2017, p. 18), podendo ocasionar inúmeros problemas em sua aplicação, abrindo margem a condutas abusivas, eivadas de arbitrariedades e ilegalidades. Paula Yurie Abiko Pós graduanda em direito penal e processual penal - ABDCONST. Pós graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Membro do Grupo de Pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do grupo de pesquisas: Trial By Jury e Literatura Shakesperiana. Membro do GEA - grupo de estudos avançados - teoria do delito, (IBCCRIM). Membro do Neurolaw (grupo de pesquisas de Direito Penal e Neurociências – Cnpq). Integrante da comissão de criminologia crítica do canal ciências criminais. Integrante da comissão de Direito & literatura do Canal ciências criminais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista, 1ª, São Paulo, Companhia das Letras, 2019. STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo, a política do ‘’nós’’ e ‘’eles’’, tradução: Bruno Alexander, 1ª edição, Porto Alegre, LP&M, 2018. LOPES, Ana Maria D’Ávila; SANTOS JR, Luis Haroldo Pereira dos. “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de direitos humanos, Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 587-609, ISSN: 2179-8966, disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rdp/v9n2/2179-8966-rdp-09-02-587.pdf>, Acesso em 02 de junho de 2020. LINHARES, Raul Marques, Lei antiterrorismo foi aplicada injustificadamente a presos. Acesso em 02 de junho de 2020. SANTOS, Jordan Espíndola dos; PIEDADE, Antonio Sergio Cordeiro. A Lei Antiterrorismo Brasileira e a (I)Legitimidade de seus Mecanismos Característicos de um “Direito Penal do Inimigo”, Revista de Direito Penal, processo penal e constituição, ISSN:2526-0200, disponível em: <https://www.indexlaw.org/index.php/direitopenal/article/view/2501/pdf>, Acesso em 02 de junho de 2020. SANTOS, Flávio Felipe Pereira Vieira dos; PONZILACQUA, Márcio Henrique Pereira. Lei Antiterrorismo no Brasil e Criminalização de Movimentos Sociais, disponível em: <https://sites.usp.br/pesquisaemdireito-fdrp/wp-content/uploads/sites/180/2017/01/flavio-felipe.pdf>, Acesso em 02 de junho de 2020. VERONEZI, Aline Siqueira; COELHO, Lívia Regina Lopes. A Lei Antiterrorista 13.260: A criação do inimigo e o estado de exceção permanente, Fronteira, Revista de Iniciação científica em relações internacionais, v. 17, n. 33, 2018, ISSN:1679-5377, disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/fronteira/article/view/13200#:~:text=Resumo,16%20de%20mar%C3%A7o%20de%202016.&text=Dessa%20forma%2C%20a%20lei%20garante,constitutivamente%20os%20atos%20como%20terroristas>, Acesso em 02 de jun. de 2020. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Doutrina Penal Nazista, a dogmática penal alemã entre 1933 a 1945, tradução: Rodrigo Murad do Prado, 1ª edição, Florianópolis, Tirant lo Blanch, 2019.
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