Pode ser um romance. Um livro de contos. De poesia. Um livro técnico. Não importa. Seja qual for o tipo de livro, o seu lugar é na estante, na cabeceira da cama, na mesa, na escrivaninha, na poltrona, no sofá ou até mesmo no banheiro, mas jamais no lixo.
Parece óbvio, não? Mas o que motivou a escrita sobre o tema foram alguns episódios não tão distantes, quando num ato de protesto político, pessoas passaram a tirar fotos (e publicar nas redes sociais) do livro de um determinado autor. O livro, entretanto, encontrava-se dentro da lixeira. A onda se espalhou. Alguns daqueles que partilhavam do mesmo posicionamento político aderiram à moda e entraram no jogo. O tal do livro (que num plano simbólico representava o seu autor) ia para a lixeira e a fotografia era tirada como forma de protesto. E foi isso. Assim como as diversas manias transitórias que circulam pelas redes sociais, a onda “jogue o livro no lixo, tire uma foto e compartilhe publicamente” passou. Teve o seu tempo. O recado foi dado. No entanto, o que me preocupa (e dá o ensejo para o presente escrito) é a forma que foi escolhida para a realizaçãodo tal do protesto. Não vou entrar no mérito do contexto político que motivou essa onda. A presente coluna aborda temas interdisciplinares envolvendo direito e literatura e não fugirei disso. Não manifestarei o meu posicionamento em tal viés, pois estaria fora de contexto este tipo de exposição. Repito: minha preocupação se dá para com os livros que foram jogados no lixo. Pobres livros! Feita a consideração acima, passo a dar nome aos bois. Os livros em questão se tratavam de obras de direito constitucional de Michel Temer. Dada a crise política que se instaurou no país e acabou por levar Temer a assumir interinamente a presidência da República, os protestos surgiram. Justo que haja, independente de concordância ou não, pois o direito de protestar deve ser assegurado a todos. A minha discordância, entretanto, se dá para com os livros sendo jogados na lixeira. Não sei se quem participou do protesto dos livros chegou a de fato jogar fora a obra que possuía ou se meramente compartilhou a foto pronta de outrem. “Foi apenas um ato simbólico e isso é o que deve ser levado em conta”, poderão dizer. Pode ser, mas ainda assim mantenho a minha indignação para com os livros que se viram sendo tratados como lixo. Lugar de livro não é no lixo! Vejamos o que motivou tais atos. Numa apertada síntese, a irresignação contra o que o autor fez na vida política. Passando a ser considerado como um pária/crápula para alguns, a produção técnica-literária do autor também passou a ser refutada. Obra e autor foram misturados e unidos num corpo só. Os livros do autor foram simbolizados como fosse o próprio, recebendo em tal sentido a irresignação concreta dos protestantes. Não cheguei a ler nenhum livro do Temer em minha ainda curta trajetória acadêmica, mas penso que mesmo na hipótese de discordar de seu conteúdo, jamais a lixeira seria um destino adequado para quaisquer de suas obras. Repito que lugar de livro não é na lixeira. Passemos para algo mais amplo, mais aberto, mais genérico, porém, sem deixar de ser concreto. Isso para não focar apenas numa leitura que muitos acabarão por confundir as coisas, não conseguindo diferenciar e compreender o tipo de análise que aqui proponho. Para além do contexto atual que acaba por cegar muitos (de ambos os lados), portanto. O que leva um livro ser repudiado? O seu conteúdo? O que é defendido ou escrito em suas linhas? O autor? Avancemos. Um erro único na vida de um autor pode ensejar no repudiar de suas obras? E se forem erros constantes, o desgosto para com suas obras é justificável? Independente das respostas, um dos principais entendimentos que deve se ter (e superar o que precisa ser superado, se for o caso) é o de que a cautela, o cuidado, o zelo, devem estar presentes em qualquer tipo de análise do tipo. Devemos estar atentos para que não sejamos inundados com determinados sentimentos a ponto de praticar condutas injustificáveis, tal qual a de jogar um livro na lixeira. Uma postura em tal sentido é de mau gosto! Recordando de outro episódio recente, houve numa prova do ENEM uma pergunta que abordou a filosofia de Simone de Beauvoir. O caos se instaurou no Brasil. Pessoas que jamais leram uma linha sequer de qualquer escrito filosófico passaram a criticar a abordagem constante na prova. Os erros foram muitos de quem assim criticou (o que é de se esperar quando alguém fala algo sobre o que não conhece), mas dentre os diversos ataques que ocorreram em tal sentido, lembro-me das manifestações ocorridas contra a própria pessoa da autora para que assim, consequentemente, seu trabalho filosófico-literário fosse também comprometido.Sendo o caso, uma coisa justificaria a outra? E se passassem a jogar os livros de Simone de Beauvoir no lixo, seria assim também apenas um ato simbólico de protesto? Entramos assim numa das indagações feitas no presente escrito. Mais um exemplo. Heidegger e o seu envolvimento com o nazismo. Acaso suas obras filosóficas merecem a lixeira como destino devido ao período obscuro da vida do autor? O mesmo tipo de reflexão pode ser feita quando no próprio livro há a defesa, a exposição ou a manifestação de algo que gera discordância, desconforto ou até mesmo repugnância. Acaso obras que possuam conteúdo controverso merecem o descarte como lixo? Minha resposta é negativa para todas essas perguntas, pois lugar de livro não é no lixo. Sobre algo em tal sentido já tive a oportunidade de escrever algumas linhas nesta coluna[i]. Pensemos melhor então sobre determinados atos impensados (ou pouco pensados), os quais são praticados muitas vezes sem que se dê conta de que o resultado não se justifica, mesmo quando se tratando de algo dito como simbólico. Na literatura jurídica, por exemplo, temos diversos autores. Várias são as posições adotadas no cenário jurídico que acabam sendo seguidas, refletidas ou refutadas pelos que estudam. Eu mesmo discordo do que sustentam alguns doutrinadores no campo do direito penal e do processo penal. Nem por isso vou sair por aí jogando livros destes no lixo, fotografando e publicando nas redes. O respeito pelo trabalho do outro, por mais que repudiemos seus argumentos (ou o próprio autor), deve se fazer presente. Se não gosta ou não quer ler, basta não ler. Assim deve seguir a literatura em quaisquer de suas “modalidades” em que se apresenta. Livro bem zelado, bem guardado, bem cuidado – independente do conteúdo ou do autor. Lamento pelos livros que foram descartados. Respeitemos a literatura como ela é, não como pensamos (com todo o nosso subjetivismo) que deveria ser. Concluo repetindo o que não cansarei de repetir: lugar de livro não é no lixo! Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia [i]http://www.salacriminal.com/home/a-literatura-e-o-patrulhamento-juridico Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |