Um caso macabro assustou a pacata cidade de Forquilhinha no interior de Santa Catarina. De acordo com o relato em uma entrevista à rede Globo[1], a autora do crime (dentista) sofria reiteradas agressões do seu então namorado, durante o relacionamento de quase 7 anos. Com detalhes, a dentista contou na entrevista que após nova discussão, ocorrida em 07 de dezembro de 2015, matou o namorado com vários golpes de faca. Logo em sequência à consumação do crime, a dentista pediu ajuda a seu pai para desaparecer com o cadáver. Foi quando surgiu a ideia de enterrar o corpo do ex-namorado nos arredores do Balneário Arroio do Silva, localizado a cerca de 40 quilômetros do local dos fatos. Mas somente ocultar o cadáver não seria suficiente para escapar da responsabilização penal. De posse do celular do ex-namorado, a dentista passou a mandar mensagens de texto para a família da vítima, como forma de tentar justificar o desparecimento da vítima. Em outubro de 2016 um crânio foi descoberto à beira da estrada de Aranguá, próximo ao Balneário Arroio do Silva. Na época do descobrimento do crânio, a Polícia Civil não tinha elementos para relacionar este fato com o então desparecimento da vítima. A investigação somente foi encerrada quando a dentista, um ano e quatro meses após o crime, resolveu confessar o homicídio e a ocultação de cadáver, sendo este último delito com participação do seu pai. Com o término do Inquérito, o Ministério Público de Santa Catarina denunciou a dentista por homicídio qualificado por motivo fútil[2] e ocultação de cadáver[3] e o pai por ocultação de cadáver. Ambos responderão às acusações em liberdade. Talvez muita gente não tenha compreendido como alguém que confessa a prática de crimes, cujo somatório das penas ultrapassa 30 anos de reclusão, vai responder à Ação Penal em liberdade. Antes é preciso saber quais são as situações previstas em Lei, nas quais a prisão antes da condenação é permitida. Cada modalidade de prisão tem requisitos específicos e destinação própria para momentos determinados durante o Inquérito e também no transcorrer da Ação Penal. Há três espécies de prisão antes da condenação previstas em Lei, são elas: prisão em flagrante; temporária e preventiva (prisão para execução provisória de pena não está prevista em Lei). Iniciando pela prisão em flagrante, prevista no Art. 302 do Código de Processo Penal, como o próprio nome sugere, é aquela em que o suspeito é preso surpreendido durante a prática de um crime, logo após, ou perseguido. Eis os requisitos da prisão em flagrante: Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; Portanto, para que seja legal uma prisão em flagrante, é necessário que ocorra pela pelo menos uma das situações previstas no Art. 302 do Código Penal. No caso da dentista, não seria possível a Autoridade Policial efetuar a prisão em flagrante na oportunidade da confissão, em razão do transcurso de mais de um ano da data em que ocorreram os crimes. Prosseguindo, a prisão temporária é aquela em que o sujeito fica preso por prazo determinado, podendo ter duração de 05 dias, prorrogável pelo mesmo período, ou de 30 dias, neste caso apenas para crimes hediondos, prorrogável pelo mesmo período. Art. 1° da Lei 7.960/89 - Caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes Art. 2° da Lei 7.960/89 - A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade Art. 2º, § 4º da Lei 8.072/90 - A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. A prisão temporária é cabível apenas na fase do Inquérito, somente quando for imprescindível para a continuidade das investigações dos seguintes crimes[4]: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°); b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°); e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único); i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986). p) crimes previstos na Lei de Terrorismo. Levando-se em consideração que o Inquérito apurava o crime de homicídio, seria possível a Autoridade Policial ter requerido a prisão temporária da dentista, porém seria difícil justificar o requisito da necessidade, tendo em vista a confissão espontânea. Por fim, a prisão preventiva prevista no Art. 312 do Código de Processo Penal pode ser decretada tanto na fase do Inquérito quanto durante a Ação Penal, não há previsão de limite temporal para sua duração, e somente pode ser decretada com fundamento em pelo menos um dos seguintes requisitos: Art. 312 CPP - A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Em comparação com as prisões em flagrante e temporária, a preventiva tem requisitos mais flexíveis, e pode ser utilizada em qualquer momento da persecução penal, seja no Inquérito ou na Ação Penal. Contudo, por mais que fosse cabível a prisão preventiva da dentista, por se tratar de acusação por crime doloso com pena superior a quatro anos, as especificidades do caso concreto são suficientes para afastar a presença de todos os requisitos do Art. 312 CPP. Em resumo, como homicídio ocorreu há mais de um ano, por mais que seja um crime hediondo, o lapso temporal, além de dissipar a atualidade do crime, também revela ausência de elementos concretos capazes de justificar o receio de eventual reiteração criminosa. Ou seja, por mais grave que tenha sido o crime, há indícios concretos que tanto o homicídio quanto a ocultação de cadáver foram fatos isolados na vida da dentista. Logo, por se tratarem de fatos isolados, consubstanciado no lapso temporal, não seria correto fundamentar a prisão preventiva como necessária a manutenção da ordem pública. Com relação ao requisito da manutenção da ordem econômica, por evidente que a liberdade da dentista não poderia trazer qualquer prejuízo. Na sequência, também não seria possível fundamentar a prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal ou mesmo para assegurar a aplicação da lei penal, pois a dentista confessou os crimes de forma espontânea. Inclusive, caso não tivesse confessado, talvez a investigação ainda estivesse em andamento. Por mais que um fato choque a população, como o homicídio que ocorreu no Município de Forquilhinha, a prisão preventiva somente poderá ser decretada quando presente os requisitos legais e for necessária à continuidade da persecução penal. Como a prisão antes da condenação é exceção e não uma consequência natural para a apuração do delito é necessário atentar para as especificidades do caso concreto, para poder compreender a possibilidade da sua aplicação. Eis alguns exemplos de circunstâncias capazes de alterar a modalidade de prisão, ou mesmo justificar que o sujeito responda em liberdade: a) o momento em que o crime foi praticado serve para saber qual a modalidade de prisão aplicável; b) caso o delito tenha sido praticado fora das situações caracterizadoras do flagrante (Art. 302 CPP) é necessário saber em qual fase encontra-se a persecução penal. Se estiver no Inquérito será possível tanto a prisão preventiva quanto a temporária (desde que observados os respectivos requisitos), porém durante a Ação Penal, somente será possível a preventiva. c) ainda sobre o momento do crime, um fato cometido há muito tempo, por mais grave, não pode ser utilizado como elemento para justificar a manutenção da ordem pública, um dos requisitos necessário para decretar a prisão preventiva. Assim, quanto mais distante no tempo for o crime, dificilmente a prisão será necessária ou mesmo a medida mais adequada para garantir a continuidade da persecução penal; d) a natureza do crime é essencial para saber qual tipo de prisão possível, pois há delitos que não admitem prisão temporária (um exemplo de crime grave que não está no rol dos crimes passiveis de prisão temporária é a lesão seguida de morte, previsto no Art. 129[5] do Código Penal) e ou preventiva (como por exemplo, todos os crimes culposos[6], inclusive o homicídio culposo[7]); e) a prisão preventiva tem uma peculiaridade, pois mesmo que cabível, é necessário observar a sua possível substituição por medidas alternativas, previstas no Art. 319 CPP[8]. Por se tratar de uma medida cautelar, a prisão antes da condenação, deve ser interpretada como um instrumento de garantia ao Inquérito ou a Ação Penal e jamais como uma forma antecipada de pena. Mesmo se tratando de réu confesso, como no caso da dentista, a prisão somente poderá ser imposta quando for a medida mais adequada e necessária para a continuidade da investigação ou do processo, conforme as especificidade do caso concreto. Por todos esses motivos, nem sempre o acusado responderá preso, por mais que tenha confessado o crime. Thiago Pontarolli Advogado Criminal [1] http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/em-video-dentista-conta-a-policia-como-matou-namorado-em-sc-eu-estava-apavorada.ghtml [2] Art. 121 CP - Homicídio qualificado - § 2° Se o homicídio é cometido: (...) II - por motivo fútil; Pena - reclusão, de doze a trinta anos. [3] Art. 211 CP - Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. [4] Rol previsto no Art. 1º da Lei 7.960/89. [5] Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: (...) . § 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena - reclusão, de quatro a doze anos. [6] Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; [7] § 3º Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos. [8] Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica Comments are closed.
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