“Me trataram como bicho; agora vou sair mordendo”: o clico de guerra e as instituições totais4/27/2017
Erving Goffman escreveu, em 1961, uma obra ímpar em que analisou características próprias de alguns estabelecimentos, os quais denominou “instituições totais”.
Segundo GOFFMAN, hospitais psiquiátricos, ordens religiosas (conventos), prisões e campos de concentração guardam similaridades que as permitem ser analisadas, do ponto de vista sociológico, como funcionando sob uma mesma lógica estruturante. Pretendo aqui destacar uma destas características, apresentadas já no início da obra, questionando com base nisso o seguinte: passados mais de cinquenta anos, continuam as prisões brasileiras (que não foram objeto específico de análise do autor) revelando este traço particular analisado por GOFFMAN? Em caso afirmativo, como se relaciona esta percepção com as funções declaradas da pena e seus efeitos sobre a coletividade? Ao descrever as instituições totais, GOFFMAN fala da “mortificação do eu”. De muitas formas estas instâncias de controle social operam a aniquilação da projeção intrapsíquica da autoimagem, degradando o “paciente” e reduzindo sua capacidade de autodeterminação, sua identidade. O autor relata:
Indo adiante, o autor passa a esclarecer de que modo ocorre esta mortificação. Aponta uma série de procedimentos, identificados com a função de “humilhação”; alguns de forma sutil (simbólica), outros de forma direta. Estes procedimentos envolvem a supressão do nome, a substituição da vestimenta, a alimentação precária, as dificuldades para manutenção da higiene e arrumação pessoal, o controle sobre a fala, a relação com as autoridades, as proibições sexuais, a regulação da rotina e outros. Para ficar com um exemplo, destaque-se aquilo que o autor chama de “contaminação da esfera pessoal”. Ao explica-la, GOFFMAN relata a situação em um campo de concentração. Lendo o relato, fica clara a possibilidade de traçar um paralelo (relativo) com o sistema penitenciário brasileiro:
Diante desta breve apreciação do que traz à tona a obra de GOFFMAN, já é possível afirmar que nossas prisões mantém a mesma lógica de mortificação do eu que as instituições sobre as quais o autor lançou sua extensa pesquisa. A questão que se levanta a partir daí é: essa mortificação do eu é necessária, ou ao menos condizente com as funções legítimas da pena num Estado Democrático de Direito? Além disso, quais os efeitos para a coletividade de um sistema penal fortemente marcado por esta caraterística? Os mecanismos de humilhação e redução não cumprem nem mesmo a função retributiva da pena, uma vez que essa exigiria, no mínimo, proporcionalidade entre o mal causado pelo delito e o mal causado pela pena. Num sistema padronizado de castigo esta proporcionalidade torna-se completamente inviável. Ademais, tal mortificação não espelha sequer o arcaico modelo de talião, porque neste se priorizava uma relação de equivalência ainda mais “palpável”, conforme pode ser deduzido da fórmula “olho por olho, dente por dente”. Os mecanismos de mortificação do sistema penitenciário só podem ser assemelhados, realisticamente, com os suplícios da era medieva. Nestes, conforme elucida FOUCAULT, a atrocidade cumpre o importante papel de reforçar publicamente o poder do soberano, infligindo medo na população (o que, com o tempo se perceberá que não acontece, sendo este um dos fortes motivos pelos quais o espetáculo do suplício começa a ser abandonado antes mesmo da “reforma penal”)[3]. Rusche e Kirchheimer ainda demonstram que o suplício é mecanismo típico de uma época em que a morte fazia parte da “rotina” das pessoas. Por se tratar de uma sociedade feudal, havia um “desprezo” pelo corpo, atitude que mudará drasticamente por ocasião do advento da “industrialização” da organização social[4]. Assim, a mortificação do eu, os mecanismos de redução, humilhação e profanação hoje em ação em nosso sistema penitenciário, devem ser vistos como um resquício do suplício? Esta parece ser uma conclusão frágil. Precisa haver um novo discurso que permita a existência de um sistema de castigo que abrigue cerca de setecentas mil pessoas, tratadas com mecanismos de controle que são considerados abjetos em grande parte do Ocidente já por muito tempo. Não permite este espaço considerar os possíveis discursos neste sentido. Opta-se por enfrentar, no momento, uma outra questão: quais os efeitos práticos para coletividade desta lógica de humilhação como castigo? Se voltarmos para GOFFMAN, teremos a resposta a partir da fala de alguém recolhido ao sistema prisional na época de seus estudos. Será importante colacionar este testemunho, com o fim de compará-lo com o título proposto para este texto. Descreve GOFFMAN a fala do apenado:
Surge nesta fala o ponto principal que ser destacar. Não se trata de visualizar, naqueles que foram selecionados pelo sistema penal, “vítimas”, “pobres coitados” ou algo semelhante. Trata-se de avaliar a forma como um Estado Democrático de Direito, no desenrolar do século XXI, deseja castigar os que se ferem as normas penais. Perceber quais os efeitos reais estes castigos concretizam. A maneira como se aplica a sanção penal na atualidade é o crime permanente mais severo praticado no país. Não há organização criminosa capaz de violentar tantas pessoas, por tanto tempo, como o nosso sistema penitenciário. Quais as consequências? Um ciclo. Mais violência. Mais vingança. Reincidências. Mais prisões. Mais vingança. Mais violência. Provavelmente FOUCAULT esteja certo ao afirmar que o princípio pelo qual se possa realmente estudar a sociedade ocidental hoje seja o critério de guerra civil continuada[6]. Guerra perene, legitimada e naturalizada por diversos meios. A fala que intitula este texto foi produzida por um “cliente” de nosso sistema penitenciário e relatada pelo Prof. Aury Lopes Jr, em palestra na Cidade de Curitiba/PR. Ela traduz este ciclo interminável, tornado factível por aquilo que GOFFMAN estudou e que FOUCAULT nos ajuda a compreender. A provocação que desejo deixar para nossa reflexão é: por quando tempo ainda? Até que ponto? Paulo R Incott Jr Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia Membro do IBCCRIM Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Referências: [1] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 24 [2] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 34 [3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. [4] RUSCHE Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004 [5] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 47 [6] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972 -1973). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. Comments are closed.
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