Retomo esta semana o projeto de pesquisa das relações entre os meios de comunicação em massa e os processos de criminalização. Para seguir a linha de raciocínio relaciono os artigos anteriores: I, II e III.
Gostaria, nesta semana, de responder a seguinte questão: em que a proposta trabalhada nestes artigos se aproxima e em que ela se afasta das percepções elaboradas por Zaffaroni (que toma por base a obra de Pierre Bordieu) e por Luis Flávio Gomes, que tratam da “criminologia midiática” e do “populismo penal”?[1] Indo direto para a conclusão, pode-se afirmar que os estudos que ficaram conhecidos como “criminologia midiática” se aproximam substancialmente do que vem sendo tratado nesta coluna. Nestes estudos também se estabelecem relações entre o que é produzido pela mídia e os enunciados do labelling approach, no tocante aos processos de criminalização primária e secundária. A “criminologia midiática” destaca o papel, notadamente da televisão, em romper a presunção de inocência e operar formas de estigmatização duplamente reforçadas – na formação da opinião popular da figura de “criminoso”, “perigoso” ou “bandido” e na espetacularização das operações policiais. Sendo claras as semelhanças entre estes estudos e o que se colocou nos artigos anteriores desta coluna, haveria campo para se pensar uma nova metodologia ou uma nova abordagem para relação entre a mídia e os processos de criminalização, conforme tem sido proposto neste espaço? Me parece que sim, em ao menos dois aspectos relevantes. O primeiro deles tem que ver com o fato de que os estudos de criminologia midiática se voltaram principalmente para o papel dos veículos noticiosos, quase que exclusivamente propagados através da televisão. Porém, é seguro afirmar que hoje o contato da maioria da população com os fatos notórios, com propensão a excitar uma movimentação política mais acentuada, se dá através das ferramentas disponibilizadas pela rede mundial de computadores, com ênfase para as redes sociais. Assim, seria importante compreender como estas, propiciando uma participação “cumulativa” do público em torno das notícias, opera de forma sensivelmente diversa os processos de criminalização, em relação ao observado pela criminologia midiática. Apenas para citar um exemplo de como essa operacionalidade aparenta ser diversa da anteriormente estudada: quando a internet não estava disponível de modo massificado, ou ainda quando as redes sociais não haviam assumido o papel que hoje ocupam, as notícias sofriam duas ações redutoras, que não hoje não sofrem. A uma, que o público que realmente entrava em contato com elas era significativamente menor. Não tanto pela presença ou ausência de aparelhos televisores nas casas, que como se sabe já marcam presença, mesmo nos lares mais desafortunados, há algumas décadas, mas porque o tempo necessário e até mesmo o interesse nos noticiários era reduzido se comparado ao que se observa hoje em relação às redes sociais. A duas, que o número de pessoas com quem aqueles que haviam se inteirado das notícias interagiam, multiplicando os efeitos estigmatizantes e reforçadores dos processos de criminalização, também eram reduzidos. Boca a boca, a quantidade de agentes que se relacionam é muito menor do que através das redes sociais. O efeito multiplicador das notícias não se mostrava exacerbado como se mostra hoje. Um segundo aspecto em que a abordagem proposta parece se distanciar do que é posto pela criminologia midiática tem que ver com algo trabalhado no movimento Direito & Literatura (que no Sala de Aula Criminal é muito bem representado pelo amigo Paulo Silas T. Filho, com contribuições eventuais de André Pontarolli, Iverson Kech Ferreira e Paulo Eduardo Polomanei de Oliveira). Este movimento tangencia o assunto aqui tratado no sentido de que se debruça sobre o modo como direito (fenômeno eminentemente social) e arte se interpenetram, se alimentam e podem se influenciar em diversos níveis. Por vezes a arte permite uma melhor compreensão de institutos de direito e de suas consequências. Ora, tratando-se de mídia e processos de criminalização, o que se observa e precisa ser pesquisado é o papel desempenhado pela indústria do entretenimento na formação de valores e modelos de comportamento. Não se pode olvidar o impacto que filmes, seriados, mesmo a propaganda, possuem na formação da personalidade e da visão de mundo da população em geral. Basta ver o forte investimento feito entre as décadas de 30 e 60 do século passado pela indústria do cigarro, com o fim de estimular o uso e associá-lo ao sucesso e a um padrão de vida elevado. Com esta observação, fica clara a necessidade de se pensar não apenas em termos de como as notícias operam um reforço da cultura de ode à punição, mas também perguntar-se acerca da possibilidade de vermos esse feito sendo reproduzido pela indústria do entretenimento. Apenas para destacar dois exemplos frugais desta questão: é notório o elevado consumo, no país com a maior população carcerária atualmente, os EUA, de seriados do tipo Law & Order, onde as agências de repressão usam meios ilícitos para o combate da criminalidade e são vistos como protagonistas. No Brasil, houve certa surpresa por parte daqueles que participaram na filmagem do filme Tropa de Elite em perceber que a ação policial de tortura foi recebida, pela maioria da população, como correta, idônea e legítima. Com o acima exposto se procurou demonstrar o espaço vislumbrado para o desenvolvimento da abordagem proposta nos artigos anteriores, ainda que se reconheça a excelente produção já existente dentro dos estudos de “criminologia midiática”. Haveriam outros pontos de distanciamento que poderiam ser relacionados, mas acredita-se que o que foi abordado seja suficiente para defender o desenvolvimento necessário. Vale destacar que o fato de se oferecer uma nova possibilidade metodológica ou um novo ângulo de análise não significa, em absoluto, que esta proposta se arroga a posição de substituta daquela, nem que deva se sobrepor a ela. Seria mais correto dizer que possui a pretensão de oferecer uma continuidade. Na próxima semana, no último artigo em que pretendo tratar do tema aventado, procurarei responder a seguinte questão: qual a utilidade de se trabalhar a partir de uma nova abordagem, ou sob um novo prisma, a relação da mídia com processos de criminalização? Qual o potencial de resistência ou de oferecimento de uma política criminal mais sensata esta proposta traz? Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABACRIM Advogado Referências: GOMES, Luiz Flávio. Para onde vamos com o populismo penal? Disponível em: http://institutoavantebrasil.com.br/para-onde-vamos-com-o-populismo-penal/. Acesso em 30/05/2017 GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. [1] Há ainda um livro de Raphael Boldt sobre o tema, que não pude tomar conhecimento, bem como uma obra de Paulo Freitas estabelecendo conexão entre a criminologia midiática e julgamentos notórios pelo Tribunal do Júri. Comments are closed.
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