Encerro com este texto a série de artigos em que propus a seguinte hipótese: a mídia funciona hoje com mecanismos aptos a serem percebidos como uma terceira via dos processos de criminalização. Ao exercer, concomitantemente, os dois processos (primário e secundário), ela pode ser compreendida como gênese de um processo de criminalização terciário. Se quisermos, uma concentração dos dois processos anteriores, criando um terceiro mais efetivo, mais veloz, mais insidioso e mais minucioso.
Os textos anteriores podem ser lidos aqui: I, II, III, IV. Hoje, gostaria de tratar das questões de pertinência temática e da base teórica possível. Ao analisar a abordagem aventada, procurou-se nos textos anteriores demonstrar em que ela se afasta do modo como a mídia tem sido colocada em relação aos processos de criminalização pela criminologia crítica. A questão que surge é: qual a utilidade ou a pertinência de alocar os meios de comunicação em massa em patamar diferente do trabalhado pela criminologia até o momento? Que desenvolvimentos fáticos se esperam desta abordagem? Em primeiro lugar, é preciso destacar que esta abordagem não tem a pretensão, como já foi dito, de ocupar a posição de substituta, por exemplo, da criminologia midiática ou mesmo do modo como a mídia é retratada pelas teorias tradicionais do labelling approach. Não se trata de uma troca, mas de uma possível concentração, um possível adensamento e atualização do viés analítico. Colocar a mídia no centro do palco, quando o assunto são os critérios pelos quais a sociedade contemporânea percebe determinadas condutas, assim como quando se pesquisa o efeito que os meios de comunicação exercem na construção de imagens, estigmas, status social, visões de mundo e, consequentemente, segregações, pode permitir uma tomada de posição, de resistência, com o intuito de estimular propostas aptas a concretizar barreiras ao que hoje é um “terreno” significativamente desregulado. Não me refiro a ausência normativa em si (tão somente), mas ao fato de que medidas de contenção de conteúdo midiático são invariavelmente tratadas, sem que sequer sejam analisadas com cuidado, como censura e restrição da liberdade constitucional de expressão. Sendo este o cenário, os meios de comunicação em massa atuam sem os constrangimentos oferecidos, por exemplo, ao poder legislativo e às agências executivas, no momento em que efetivam os processos de criminalização tradicionalmente analisados pela criminologia. A mídia se torna um superpoder, insidioso e quase sem accountability. Revelar, através de uma pesquisa cuidadosa, pautada por uma metodologia científica apropriada, o papel da mídia nos processos de criminalização nas últimas décadas, levando em conta o ferramental de comunicação mais recente (redes sociais) e ampliando o foco de análise (para contemplar a indústria do entretenimento) parecer ser um trabalho ainda a ser feito. Como último apontamento relacionado aos objetivos práticos desta abordagem, destaque-se o fato de que a perda do sentimento de representação na relação população-classe política, abre um espaço ainda mais amplo para mídia na formação de opinião. Ocupar este espaço e/ou demonstrar de modo claro, ainda que primeiramente em nível acadêmico (mas pensando sempre em extravasar este meio), o processo de criminalização de condutas e de seleção de estereótipos desviantes através dos meios de comunicação, pode excitar o debate crítico em torno do assunto, ampliando a capacidade da população de “filtrar” os processos de criminalização e, possivelmente, reduzindo seus efeitos deletérios. Feitos estes comentários, relacionados à pertinência da abordagem aventada, cumpre relacionar brevemente os aportes teóricos que podem servir ao desenvolvimento do projeto. O que se relaciona abaixo precisaria ser entendido como complemento a uma base prévia de criminologia crítica. Um primeiro vetor de pesquisa interessante são as conclusões que ficaram cunhadas como agenda setting. Do que se trata? De estudos, realizados a partir da década de 70 do século passado nos EUA, em que foram analisados os efeitos sociais da mídia. Maxwell McCombs e Donald Shaw foram os pioneiros desta linha de pesquisa. Segundo a hipótese, comprovada em suas análises, “a mídia, pela seleção, disposição e incidência de suas notícias, vem determinar os temas sobre os quais o público falará e discutirá.”[1] Os estudos se concentraram primordialmente no processo eleitoral, mas suas conclusões parecem interessantes para a abordagem aqui proposta. Outra vertente de estudos relevante é o que foi produzido pelo Mass Comunicattion Reserch[2], entre os anos de 1920 e 1960. Uma das correntes destes estudos é conhecida como sociologia funcionalista, fortemente calcada nas lições sistêmico-estruturais de Talcott Parsons. Ainda dentro desta corrente, os nomes de Lazarsfeld e Merton despontam como bases teóricas plausíveis para a compreensão dos efeitos dos meios de comunicação em massa. Indo adiante, a obra de Niklas Luhmann pode oferecer conhecimentos valiosíssimos na análise do poder de regulação social sistêmica, estruturação e estabilização por meio da comunicação. Note-se que essas linhas de pesquisa foram desenvolvidas ainda no século passado. Um estudo apropriado precisa, em virtude disso, absorver estas bases e, ao mesmo, atualizar seu conteúdo diante das grandes revoluções que os meios de comunicação sofreram de lá para cá. Diversos autores têm se proposto a analisar o impacto das redes sociais na atualidade. Com boa filtragem acredito que não será difícil encontrar material útil neste sentido. Quanto a questão envolvendo a indústria do entretenimento, desconheço obras específicas que tenham tratado do seu impacto através de um estudo sociológico apropriado, mas imagino que este desconhecimento seja apenas o resultado de não ter efetuado, ainda, uma pesquisa cuidadosa (não houve tempo de fazê-la antes da coluna desta semana). Apenas cito uma obra não científica, um romance, que acredito retratar aquilo que será encontrado na pesquisa. Trata-se do livro (que gerou filme homônimo) Thank You for Smoking, de Christopher Buckley, onde este expõe o lobby das indústrias de tabaco e seu uso do cinema (e da publicidade televisiva) como meio de formação de uma “cultura do cigarro”, ligada a status social elevado e sucesso financeiro. Com isso encerro a proposta de estudos relacionados a mídia e processos de criminalização. Um comentário concludente: é comum, no meio acadêmico, um certo “ciúme” egocêntrico das propostas de pesquisa e estudo. Entendo que isso é altamente contraproducente. Se desejamos levar a sério a existência de uma “comunidade científica”, precisamos nos comportar como tal. Precisamos formar um conjunto de colaboradores, não de competidores narcisistas. Assim, caso surja, por parte de algum dos leitores, o desejo de desenvolver a proposta de pesquisa analisada nas últimas semanas nesta coluna, numa dissertação de mestrado ou numa tese de doutorado, a iniciativa será aprovada. Estarei à disposição! Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIMI Advogado [1] BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na Comunicação: da informação ao receptor. São Paulo: Moderna, 2001. p. 169 [2] O Mass Communication Research se refere ao aglomerado de pesquisas e teorias que se deu nos EUA a partir de 1920, coincidindo com o surgimento das comunicações de massa. Em seu início a Escola de Chicago e a Escola de Palo Alto foram as grandes protagonistas. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |