Século 21, ano de 2018, direito ao voto conquistado em 1932, Constituição Federal de 1988 reconhece direitos igualitários, Código Civil de 2002 passa a aceitar a possibilidade de ser chefe de família, o Código Penal, em 2009, deixa sua visão arcaica, moralista e patriarcal um pouco de lado e os crimes contra os “costumes” passam a chamar “crimes contra a dignidade sexual”.
Uma breve regressão histórica e legislativa apenas para iniciar um assunto tão caro e sensível a todas as mulheres: a dignidade sexual. Até onde se evoluiu no tratamento dos crimes cometidos contra a liberdade sexual das mulheres? Até que ponto as mulheres deixam de ser tratadas como vítimas e passam a ser vilãs de crimes cometidos contra seus corpos? Até quando a sexualidade feminina será vista como “bem jurídico disponível” quando se trata do prazer masculino? Em 2016, quarenta e nove mil, quatrocentos e noventa e seis (49.496) estupros foram registrados no país. Só na cidade de São Paulo um (1) estupro é cometido a cada onze (11) horas em local público e, em média, dez (10) estupros coletivos são notificados todos os dias no sistema de saúde do país. Setenta por cento (70%) das vítimas de estupro são crianças e adolescentes e seus agressores são pessoas próximas: pais, padrastos, avôs, tios, primos e amigos, ou seja, pessoas que induzem o sentimento de segurança[1]. Em dezembro de 2017, uma menina de dezesseis (16) anos[2], que era estuprada pelo seu próprio pai desde os dez (10) anos, para provar a violência sexual que sofria, gravou um dos momentos no qual seu pai lhe obrigava a fazer sexo com ele, mandando-a “transar direito”, inclusive, sem preservativo. O vídeo foi entregue à polícia e a alguns órgãos de imprensa, “viralizou” na internet e causou revolta. "Ser mulher no Brasil equivale a viver num estado de guerra civil permanente”[3], afirmou Lourdes Bandeira, professora de sociologia da UnB e ex-secretária executiva da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, ao falar sobre a deficiência das políticas públicas para proteção das mulheres, em um país que possui leis suficientes e cada vez mais rigorosas para punir os agressores, tendo a Lei Maria da Penha reconhecida pela ONU como a mais avançada do mundo em relação ao enfrentamento à violência doméstica e familiar. Porém, na contramão dessa fábrica legislativa, lembra que apenas 7,9% dos municípios brasileiros contavam com delegacia de atendimento à mulher, em 2014, e as reclamações das vítimas eram e, ainda, são frequentes em relação ao atendimento: “Precisamos de profissionais mais sensibilizados com a violência doméstica, para que mortes sejam evitadas, além de ações efetivas de proteção daquelas que denunciam”. O que justifica uma mulher vítima de um estupro, ao ser atendida por uma delegada, em uma delegacia especializada, ser tratada como a culpada pelo ato do agressor? Ou, pior, ter sua dor qualificada como insatisfação e arrependimento pelo ato sexual? Por que a palavra da vítima (MULHER) não é levada em consideração? Até que ponto o sistema de justiça criminal protege essas mulheres? Para a professora e criminóloga, Vera Regina Pereira de Andrade[4], o sistema de justiça criminal:
A mulher, ao passar pelo controle formal do sistema de justiça criminal (polícia, Ministério Público e sistema penitenciário), sofre com a discriminação, a humilhação e a estereotipia. Vera Regina afirma, ainda, que o sistema de justiça criminal não combate, reduz ou elimina a criminalidade, protege bens jurídicos universais e gera segurança pública e jurídica, mas a constrói seletiva e estigmatizante, reproduzindo desigualdades e assimetrias sociais, de classe, gênero e raça, o que chama de eficácia invertida. E nesse processo estigmatizante, a professora, brilhantemente, demonstra a estereotipia na própria linguagem[5]:
Ou seja, “o cara” cabe ao homem, “a coisa” à mulher. Esses discursos não são de agora, advêm da filosofia, da religião e da ciência, como muito bem lembra, Laura Rodrigues Benda[6]: “as relações de poder concretas, a distribuição dos papéis e do status em nossa sociedade têm uma face simbólica, um discurso que o justifica e que o retroalimenta. O discurso filosófico forma parte substancial da rede de relações de poder”. Da mesma forma, “na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão do Paraíso tem essa função. Eva é a Pandora judaico-cristã porque, por sua culpa, fomos desterrados do Paraíso [...] até o século XVII a medicina científica, da qual somos herdeiros, acreditava que havia apenas um sexo, o do macho, o qual simbolizava a perfeição da espécie humana”[7]. Os homens ainda estão no centro de tudo, inclusive, do sistema de justiça criminal[8]:
Quanto à discussão aqui trazida, ainda hoje, a mulher vítima de estupro é colocada como mera vítima, porém, sem as devidas proteções e, infelizmente, vista, tratada e ouvida não de forma imparcial, mas sempre se levando em consideração a sua “vida pregressa”, sua reputação sexual:
Há nas demandas femininas uma inversão de papéis e uma nítida “hermenêutica da suspeita”[10], contradizendo até a própria lógica de seu papel de vítima ‘honoris causa’ do sistema de justiça criminal, a partir do momento em que vê sobre seus ombros o ônus de provar o que está relatando, sua vida é vasculhada, inicialmente, com uma pré-análise se é “digna” de credibilidade, a qual é avaliada por perguntas que lhe são feitas a respeito de sua reputação sexual: se mantinha uma vida sexual ativa, se conhecia o seu estuprador, se consentiu ou resistiu, se teve prazer, se provocou, enfim, por isso, “a referência à vitimologia e à pessoa da vítima relacionadamente à pessoa do autor, que não se dá com a mesma intensidade em todos os processos de criminalização, encontra nos crimes sexuais o lugar por excelência de sua utilização”[11]. Essa violência sistêmica perpetuada contra a mulher que, mesmo após ter sido estuprada, é constrangida e humilhada ao longo do inquérito policial e do processo penal, tem raízes profundas na educação, como se afirmou em outra oportunidade [aqui[12]], que vai ao encontro do que diz Anne Rammi, ativista do Mamatraca: “No fundo, toda mãe é meio solo na sociedade machista em que vivemos, que compreende o cuidado com os filhos como tarefa de mulher”[13]. A luta das mulheres, apesar de ter avançado de forma significativa em alguns anos, ainda não terminou, e cabe somente a nós, mulheres, continuar a resistir, pois, essa é uma batalha árdua e permanente e "o direito penal sozinho não cura uma sociedade machista. A revolução está na educação. Precisamos falar sobre masculinidades com as crianças. Além disso, desconstruir essa masculinidade dominante e tóxica, que violenta mulheres e cria homens abusadores[14]”. Luana Aristimunho Vargas Paes Leme Advogada Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera – Uniderp Cursando especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Fundação Assis Gurgacz. [1] Dados do 11º Anuário Brasileiro em Segurança Pública. Disponível em: <https://universa.uol.com.br/especiais/ser-mulher-no-brasil-machuca/#ser-mulher-no-brasil-e-viver-com-medo-de-ser-abusada>. Acesso em: 12 mar. 2018. [2] Disponível em: <https://br.blastingnews.com/brasil/2017/12/pai-estupra-a-propria-filha-e-video-mostra-tudo-mandava-transar-direito-002241149.html?sbdht=_-pSE6IdX-YECgGx3Wt3CjBD3UsUt0xwOhlOCQnFLJ07sFL6OxrSHwn6-wE3q79Cu0>. Acesso em: 10 jan. 2018. [3] Disponível em: <https://universa.uol.com.br/especiais/ser-mulher-no-brasil-machuca/#ser-mulher-no-brasil-e-viver-com-medo-de-ser-abusada>. Acesso em: 12 mar. 2018. [4] A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, julho/ago./set. /2007, p. 56. [5] A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, julho/ago./set./2007, p. 64. [6] Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/28/filosofia-e-ciencia-tambem-legitimam-desigualdade-de-genero/>. Acesso em: 28 fev. 2018. [7] Idem. [8] A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, julho/ago./set./2007, p. 65/66. [9] Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/03/08/violencia-de-genero-e-questao-estrutural-afirma-defensora-publica-do-rio/>. Acesso em: 8 mar. 2018. [10] Termo utilizado pela professora Vera Regina Pereira de Andrade. [11] A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, julho/ago./set./2007, p. 70. [12] Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/a-justica-o-direito-o-poder-e-as-mulheres>. Acesso em: 12 mar. 2018. [13] Disponível em: < https://universa.uol.com.br/especiais/ser-mulher-no-brasil-machuca/#ser-mulher-no-brasil-e-viver-com-medo-de-ser-abusada>. Acesso em: 12 mar. 2018. [14] Afirma Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Disponível em: <https://universa.uol.com.br/especiais/ser-mulher-no-brasil-machuca/#ser-mulher-no-brasil-e-viver-com-medo-de-ser-abusada>. Acesso em 12 mar. 2018. Referências ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, julho/ago./set./2007. MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |