![]() Coluna de Rodrigo Jordão no sala de aula criminal, vale a leitura! ''As normas constitucionais não existem apenas para formação política de um povo, de uma nação ou de um Estado, mas para balizar a forma e a matéria de todas as demais leis que vierem a existir ou que mesmo já existindo, forem recepcionadas pelo texto constitucional dentro daquele território, sendo um conjunto estruturado e concatenado. Nas palavras de Ávila (2018, p. 50): “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”. Por Rodrigo Jordão RESUMO
Situação comumente utilizada até certo ponto no processo penal, e para a sentença de pronúncia nos crimes de competência do Tribunal do Júri, a aplicação do dito, in dubio pro societate, tem parecido mar calmo na jurisprudência, mas suscita discussões e discordâncias válidas na doutrina e no entendimento jurídico. Isto porque, em uma ponta, temos um princípio constitucional, e por assim o ser, com força vigente, o in dubio pro reo, pelo qual, em resumo, havendo dúvida acerca da prática delitiva, a serventia deve ser em favor do réu. Contudo, o que se percebe no cotidiano jurídico, é que, por diversas vezes, quando há mínima dúvida acerca da autoria delitiva, prefere-se resolver a questão com a aplicação de uma ficção jurisprudencial, o in dubio pro societate; ou seja, havendo dúvida, há a privação de direitos do acusado em favor de uma criação que falseia o maior interesse na proteção social, deixando desamparado o réu em seus direitos basilares e em plena discordância ao texto constitucional. O texto presente busca atingir enquanto objetivos, expor de modo suscinto, a força constitucional do princípio do in dubio pro reo. Em seguida, apresentar a construção de um ditame meramente jurisprudencial, sem força normativa, o in dubio pro societate. Para só então, realizar o choque de ideais jurídicos para demonstrar dentro de um esquema jurídico e da ordem democrática a pertinência e validade de aplicação da dúvida no processo penal. O trabalho se funda, tanto na legislação vigente, primando pela regra constitucional, considerando outros princípios, a exemplo da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, claramente aplicados a qualquer pessoa incursa em um processo penal, para ao final apresentar uma conclusão coerente com o sistema normativo pátrio. A justificativa se encontra na constante necessidade de aprofundamento do assunto, através de textos doutrinários, decisões judiciais e dentro do espectro da discussão dos temas jurídicos, como modo de colaborar com fomento da atividade jurídica dos agentes processuais diversos. A fundamentação teórica se faz basicamente pela referência constitucional, das leis ordinárias, das decisões judiciais e através dos textos jurídicos que abarcam com maestria os temas tratados. Conclui-se que, uma criação jurisprudencial, por maior validade que possa ter em certo momento processual, não pode em tempo algum da linha procedimental, afrontar o disposto clara e objetivamente na conjuntura constitucional de um garantismo que não se confunde com impunidade, mas com forma processual. Palavras-chaves: Constituição; Princípios; Jurisprudência; Decisões; Processo Penal. INTRODUÇÃO Não é recente que a prática judicial no Brasil, por diversas vezes tem se utilizado do argumento decisivo do dito, in dubio pro societate, pelo qual, havendo dúvida mínima ou razoável, aquela situação temporal específica é decidida em prol de um entendido bem social. Um claro exemplo deste pressuposto é a sentença de pronúncia, momento pontou nos ritos processuais de competência dos crimes processados e julgados pelo tribunal do júri, onde ao final da primeira fase, da instrução processual, o juiz que presidiu aquele momento, após alegações finais das partes, decide pela pronúncia ou impronúncia do réu, decidindo se o mesmo será absolvido das acusações a ele imputadas ou se conduz a situação ao plenário do tribunal do júri, para que a pessoa seja julgada por seus pares. O ponto é que, para uma sentença de pronúncia, já tendo sido ultrapassada a instrução processual, com avaliação da materialidade, dos indícios de autoria, da prova testemunhal e interrogatório do réu, não podendo o exercício do direito ao silêncio ser interpretado em seu desfavor, ainda assim, o decisor se utiliza do argumento da dúvida razoável, ou da existência de indícios de autoria para prolatar a sentença de pronúncia, cometendo o mesmo ato de Pôncio Pilatos, que dentro da cultura judaico-cristã, teria “lavado as mãos”, jogando a vida e morte de Jesus nas mãos do povo. De outra monta, a regra estabelecida em lei, é que a dúvida deve ser favorável ao réu, com aplicação do princípio do in dubio pro reo, pelo qual, havendo dúvida, esta deve servir para absolvição, sem aresta para argumentos contrários. Ou ainda, quando os indícios de autoria não sejam confirmados durante o período da instrução processual competente, por ausência de prova cabal, a absolvição é medida que se impõe. Logo, percebe-se um choque gutural entre uma ficção jurisprudencial, de caráter meramente punitivo e inseguro, o in dubio pro societate, o qual não encontra qualquer segurança ou apoio legítimo e legal, e o um princípio instituído na constituição federal, o in dubio pro reo. A razão do choque se dá, estreme de dúvidas, em face da nossa formação cultural, que para não reconhecer a absolvição em favor do réu, prefere protelar a situação, lançando a responsabilidade ao conselho de sentença, mesmo que haja dúvida acerca da autoria delitiva ou mesmo, havendo mínimos indícios que não foram capazes de se concretizar em prova mesmo após a instrução processual durante a primeira fase do procedimento dos processos afetos ao julgamento do tribunal do júri. Neste esteio, o trabalho visa buscar não apenas raízes históricas, o que se fará de modo breve do dito, “in dubio pro societate”, mas sua aplicação atual e qual a motivação e os fundamentos para que em determinados momentos, tal ficção jurídica tenha preferência ao constitucional princípio do in dubio pro reo, visto que este deveria por uma questão de legalidade ser inquestionável em comparação à citada criação jurisprudencial. A NOÇÃO DOS PRINCÍPIOS E SUAS DIFERENÇAS DAS REGRAS As normas constitucionais não existem apenas para formação política de um povo, de uma nação ou de um Estado, mas para balizar a forma e a matéria de todas as demais leis que vierem a existir ou que mesmo já existindo, forem recepcionadas pelo texto constitucional dentro daquele território, sendo um conjunto estruturado e concatenado. Nas palavras de Ávila (2018, p. 50): “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”. Para um entendimento balizado, Humberto Ávila (2018, p. 55), rememorando Josef Esser, indica uma ideia de princípios como sendo: “Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada no grau de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão”. Neste panorama é possível enxergar que o princípio possui uma força motriz fundamental; algo como a capacidade basilar para a tomada de decisão, sendo o fundamento, a gênese das demais normas. Uma clara diferenciação entre princípio enquanto poder normativo fundamental e norma sem tal capacidade, se encontra nas palavras de Dias (2021, p. 91): “Seguimos com os ensinamentos de Streck, destaca-se que Alexy, por meio da sua teoria da ponderação, confunde norma com texto, olvidando-se do principal, que é a aplicação do princípio. Para Streck, portanto, não existe regra sem princípio, enquanto que este é a “enunciação do que está anunciado”. Os princípios são antecedentes às regras, as quais não podem ser aplicadas sem a existência de um princípio que as tenha instituído”. O princípio, ao contrário das outras normas, é por conseguinte, a norma por excelência. Se visto como uma norma, o princípio tem a capacidade de servir para a interpretação e aplicação do Direito. IN DUBIO PRO REO x IN DUBIO PRO SOCIETATE Após ter-se uma breve síntese da questão do princípio e seu caráter normativo fundamental, é chegado o momento de se perceber as diferenças entre o caráter da dúvida na aplicação do Direito a um caso concreto. De um lado temos o denominado “in dubio pro reo”, e do outro, o brocado, “in dubio pro societate”, sendo este a aplicação de uma dúvida razoável em favor de algum critério social, de certo modo indeterminado, e aquele, a aplicação da dúvida em favor do réu. Há de se ressaltar em poucas linhas que o in dubio pro reo, ou seja, a dúvida sendo aplicada em benefício do acusado, encontra amparo legal, já, o citado, in dubio pro societate é uma ficção da jurisprudência, datado de meados da década de 1950, não tendo amparo legal. Logo, não se pode tratar ambos os institutos com a mesma condição de princípio. O in dubio pro reo tem origem constitucional no art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988, dentro do escopo da presunção de inocência. Neste sentido, Mariconde (1956, v. II, p. 34), traz a ideia: “o princípio in dubio pro reo exclui, em absoluto, a carga probatória do imputado; esse não tem o dever de provar nada, embora tenha o direito de fazê-lo, pois goza de uma situação jurídica que não precisa ser construída, mas sim, destruída; se não se prova sua culpabilidade seguirá sendo inocente e, por consequência, deverá ser absolvido” Sem delongas, por se tratar de um texto sintético, a aplicação da dúvida em favor do réu, é, sem dúvidas, um princípio, instituído em norma constitucional, que assegura ao acusado o peso de formular meios probatórios, sendo este, ônus exclusivo de quem acusa. Logo, vige, ao menos na teoria, em seu favor, a presunção da inocência, portanto, a dúvida deve ser interpretada em seu favor, mesmo que não tenha sido o que se vê na prática rotineira das decisões judiciais. Por outa banda, temos a anomalia jurídica conhecida como, in dubio pro societate, e antes de apontarmos sua provável origem, de cunho exclusivamente jurisprudencial, temos que tecer comentários acerca da ausência principiológica do dito brocado. Assim, a ilustre lição de Dias (2021, p.99): “Diante do apanhado doutrinário e jurisprudencial feito acima, sobre a importância dos princípios para a aplicação do direito, entende-se que o in dubio pro societate não pode ser retratado princípio, mesmo na vertente tradicional que reconhece a existência (e valor) aos princípios gerais do direito. Para Sérgio Pitombo, o in dubio pro societate não passa de um aforismo, muito em decorrência de sua incompatibilidade com o sistema constitucional e convencional vigente”. Dito isto, resta claro que não se pode comparar um verdadeiro princípio (in dubio pro reo) com um brocado jurisprudencial que de modo algum goza da condição de princípio, não superando a medida de um aforismo. Ainda na mesma ideia, o também conhecido por in dubio contra reum é algo sem profundidade científica de um princípio, o que leva a conclusão de que não se pode ser utilizado dentro de um standard probatório, nem como fundamento de uma decisão (DIAS, 2021, p. 99-100). Para situarmos, ao menos o nascimento jurisprudencial do autoritarismo do aforismo da dúvida contra o réu, nos idos do ano de 1953, coube ao Eminente Ministro Nelson Hungria, nos autos do RHC 32769[1], julgado em 30 de setembro de 1953. A partir de então, o que se vê ou lê, é um conjunto de decisões, doutrinas, que começaram a adotar tal concepção cientificamente e juridicamente frágil, insustentável. Ainda, replicando as palavras de Dias (2021, p. 101): “Nenhum princípio constitucional confere legitimidade à regra do in dubio pro societate ou do in dubio contra reum. Com isso, todo e qualquer ato decisório (judicial, administrativo e até político) estribado nessa regra é patentemente inconstitucional e inconveniente”. Portanto, discussões ou decisões a parte, o que se extrai é que, na ausência de vontade jurídica do uso do princípio constitucional do in dubio pro reo, o sistema se encarregou de ficcionar esse axioma que nomeou de in dubio pro societate, e por fim, decidiram por nomeá-lo de princípio, mesmo sem sê-lo. CONCLUSÃO Em últimas palavras, não há comparativos científicos ou jurídicos, e nem pode haver, quando se colocam em certo “duelo” um princípio constitucional frente a um adágio criado exclusivamente pela jurisprudência e difundido posteriormente por parcela doutrinária e replicado seu autoritarismo dentro da própria jurisprudência. Nas linhas e construções de argumentos anteriores, é perceptível que a questão, não é implicar algum embate que defina se a dúvida processual deva favorecer o réu ou a sociedade, visto que tal ideia recai em um absurdismo sem amparo algum. Na verdade, o que se quis, é demonstrar que, de um lado temos um princípio constitucional (in dubio pro reo), e do outro, têm-se exclusivamente um aforismo (in dubio pro societate). Logo, não há embate necessário, posto que o princípio, verdadeiramente instituído em norma constitucional deve ter prevalência absoluta quando afrontado por uma criação unicamente da jurisprudência e que não goza de força de princípio. Em última análise, o brocado do in dubio pro societate (in dubio contra reum), nasce de autoritarismos, tendo seu nascedouro no sistema jurídico brasileiro, uma decisão dentro de um recurso em habeas corpus¸ do ano de 1953, mas que nunca foi alçado verdadeiramente ao posto de princípio, visto que após 1953, tivemos duas constituições, contando a nossa atual, promulgada em 1988, porém, mesmo no período arbitrário após o golpe de 1964, em momento algum o in dubio pro societate foi instituído em lei. Daí que, sempre que em confronto, a dúvida, independente do momento, do rito ou instância, deve prevalecer em favor do imputado. Rodrigo Jordão Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. REFERÊNCIAS: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18 ed. rev e atual. São Paulo: Malheiros, 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). RHC 32769/SP, relator: Ministro Nelson Hungria. Julgado em 30/09/1953, publicação em 20/05/1954. DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional. 2 ed., Florianópolis [SC]: Emais, 2021. MARICONDE, Alfredo Vélez. Estúdios de derecho procesal penal. Córdoba, Imprenta de la Universidad, 1956, V.II NOTAS: [1] Ementa RECURSO DE HABEAS-CORPUS, SEU DESPROVIMENTO. NA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA, NÃO ESTÁ O JUIZ ADSTRITO, NO TOCANTE A IMPUTADA AUTORIA DO CRIME, A UM CONVENCIMENTO IDENTICO AO QUE E NECESSARIO PARA A CONDENAÇÃO. ANTES DA SENTENÇA FINAL, NÃO PREVALECE O IN DUBIO PRO REO, MAS O IN DUBIO PRO SOCIETATE.
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