"Não sou negão"! (Lembranças da ilha) O preso de um modo geral, no decorrer do cumprimento de uma sentença sofre muitas transferências de presídios, costumávamos dizer que o preso é mercadoria do Estado. Comigo não foi diferente, passei por mais de 15 carceragens no decorrer de minha caminhada. Em todas estas transferências, há um procedimento denominado “admissão”, onde é realizado pela equipe de “recepção” do presídio que recebe o preso para o “cadastro”. Nesta metodologia é concretizada uma rápida entrevista com o acautelado, onde dentre outras coisas é perguntado nome completo, idade, estado civil, endereço, delito pelo qual foi condenado, se é preso de seguro, se tem doença e etc...Também é perguntado como o preso auto denomina em relação a cor de sua pele... Estas entrevistas deveriam ocorrer em local privado, onde o preso pudesse explanar as informações sem que os outros presos tomassem conhecimento, contudo, há uma diferença abissal em o que deveria, e o que realmente ocorre por detrás dos altos muros das prisões deste nosso Brasil. Fato é que em uma destas muitas transferências que sofri, me chamou a atenção o ocorrido com um companheiro que chamávamos de “Bola Sete”. Bola Sete era um irmão de caminhada que deixava a cadeia dos irmãos mais leve, tamanho o seu senso de humor e gaiatice. Gilmar (Nome do Bola Sete) consistia em um homem de quase dois metros de altura, pesava uns 150 quilos, e tinha um coração de igual envergadura ao seu tamanho, é obvio que para fazer jus ao nome o apelido tinha que fazer menção a sua cor de pele. Bola Sete era preto, bem preto. Voltado à questão da transferência, tomei um “bonde” juntamente com meu amigo gaiato Bola Sete, quando chegamos à carceragem de destino, nos colocaram todos algemados no pátio, debaixo do sol de meio dia, sem almoço, sem água e sem usar o Boi (banheiro); Por volta das 16 horas, começaram a fazer a “admissão” conforme acima explicitado, contudo, pelo avançado da hora, e pelos guardas estarem em vias de trocar o plantão, realizaram a “entrevista” coletiva, assim, no meio de todo mundo...Chamavam pelo numero de infopen (o meu eu jamais esqueci...o preso para o Estado é apenas um numero...), e falávamos os nomes e íamos respondendo o que nos era perguntado, estado civil, idade, endereço, auto denominação de cor de pele e etc... Bola Sete estava em minha frente na ordem de chamada, e respondeu tudo com presteza e agilidade, mas quando chegou ao questionamento da cor de pele ele me solta: Sou Pardo! Foi uma risada geral, já que como explicado, Bola Sete era o cara mais preto que conheci na vida, como estava na sequencia de falar, respondi, mas com o desejo de perguntar para meu Amigo o motivo de se dizer pardo, e foi o que fiz: Indaguei: Greg: Qualé desta de você responder que você é pardo? Bola Sete: Qualé nada doido, já tô preso, fudido, qualquer coisa nos esculacham, e você ainda quer que eu falo que sou negão? Sai fora mané! Dei umas boas gargalhadas, e seguimos para a nossa nova morada... Hoje refletindo sobre este episódio e sendo conhecedor da seletividade penal, e para que se presta o Direito Penal, fico me perguntado: que País é este que um ser humano tem vergonha de sua cor, e mais que isto, sabedor que de certa forma o meu irmão tinha razão. Tudo é mais difícil para o preto neste Brasil, sobretudo em um ambiente que na sua concepção já foi criado para separar e segregar aqueles que a sociedade entende serem pessoas de segunda classe... Deve ser por isto que as “estatísticas oficiais” dão conta do número incrivelmente grande de “pardos” no sistema prisional, por pessoas com o mesmo entendimento e percepção do Gilmar, o Bola Sete... Gregório Antonio Fernandes de Andrade (Greg Andrade) Advogado Sobrevivente do sistema carcerário brasileiro Ativista e militante em Direitos Humanos no Coletivo PESO – Periferia Soberana
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |