O quanto a loucura pode ser produzida? Aliás, como e quem define o que é loucura? Sendo algo que foge dos padrões sociais, é possível imaginar que o conceito foi alterado com o passar do tempo. Logicamente, se a população e as formas de viver sofreram alterações durante o desenvolvimento do que chamamos hoje de sociedade, aquilo que se apresenta fora dessa delimitação também não será igual ao que era 50 anos atrás, por exemplo.
Mesmo assim, não podemos negar que a invalidação do indivíduo que se encontra fora de tais padrões é bastante perceptível, em qualquer que seja o momento histórico analisado. Isso pode não ser notado de início, pois há uma certa resistência em enxergar algo que nos incomoda e, muitas vezes, é necessário que algo aconteça para chocar e, então, proporcionar uma reflexão acerca do assunto. Isso pode acontecer através de artigos e livros lançados, como foi o caso de O Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, uma jornalista que investigou um dos maiores comércios de corpos que ocorreu em um hospital psiquiátrico em Minas Gerais, durante as décadas de 1930 e 1980, e o consequente estado de maus tratos e descaso com os pacientes tidos como loucos, mas que em parte, não apresentavam nenhum traço que os diagnosticassem com algum tipo de transtorno mental. Dessa forma, o jornalismo investigativo auxilia na apresentação de fatos que podem ter ficados encobertos durante muito tempo. Entretanto, essa não é uma forma nova de apresentação e já houveram outros casos antes que denunciavam o funcionamento de hospícios e demais instituições de atendimento às pessoas. Elisabeth Cochran Seaman, nascida em 1864, foi uma das primeiras mulheres que se aventuraram nas reportagens investigativas, não apenas procurando matérias polêmicas, mas tendo coragem de se vivenciar determinadas realidades, como é visto em seu livro "10 dias em um hospício". Nele, podemos ter conhecimento sobre a época em que ela esteve em um hospital psiquiátrico, trabalhando encoberta para verificar como era o tratamento que as mulheres ali internadas recebiam. Assim, com a oferta de seu editor, ela passaria dez dias no Blackwell's Island Insane Asylum, como uma paciente, tendo que levar todos a acreditarem que ela padecia de alguma doença mental. Nellie Bly (pseudônimo utilizado em suas publicações) logo percebeu que se encontrava num local que não oferecia qualquer tipo de condição de recuperação. Além dos maus tratos perpetuados por médicos e enfermeiros, como abusos físicos e até mesmo sexuais, o ambiente era muito sujo, sendo que a convivência com os ratos era comum. Não somente isso, a comida fornecida não era nem de longe saudável: o cardápio contava com pão velho, carnes quase podres, caldo e água suja. Como combinado, após o tempo previsto, um advogado foi buscá-la e sua experiência rendeu o livro já mencionado, posteriormente. Por fim, ela revelou que, mesmo que tivesse que fingir um transtorno, as condições do local eram tão terríveis que poderiam ter deixado qualquer pessoa louca em menos de um mês. Felizmente, o relato chocou tanto que uma investigação formal foi iniciada, e um juiz determinou um aumento na verba, como forma de investimento, assim como visitas mensais para garantir que houvesse um melhoramento no tratamento e funcionamento da instituição. Tendo a contribuição do jornalismo de maneira positiva, percebemos um desdobramento não apenas no sentido social, já que serviu de alerta para as pessoas tomarem conhecimento sobre o que ocorria lá dentro, mas também jurídico. O fato chamou a atenção também de outras esferas, pois denunciava uma demanda urgente na saúde, que contribuía para uma constante ferida aos direitos individuais de um ser humano. Pensando em como a sociedade atual vive e em como assuntos tidos como de cunho psicológico são pouco discutidos e, muitas vezes, vistos como "frescura", é interessante hipotetizar a padronização de indivíduos que está sendo criada. Há o processo "normal" de educação e formação: colégio, faculdade, trabalho; há o curso de vida mais aceito: casar, ter filhos, se aposentar; as identidades de gênero, que ainda são percebidas como homens, mulheres e as demais que são discutidas, mas ainda tidas como "as diferentes". Podemos ficar um bom tempo lembrando de outros exemplos de como seguir a receita da "vida normal", pois, afinal, a sociedade tenta pregar que aceita as diferenças, mas não dá espaço para que elas se manifestem. Assim como Nellie Bly teve de fingir uma loucura para poder descobrir como os supostos loucos eram tratados, e, sabendo que ela própria percebeu uma "fábrica da loucura", quantos de nós nos contemos e não vivemos como gostaríamos, tendo que também fingir uma identidade que não é a nossa real? Tomando como referência a faceta do transtorno mental, será que ao se fechar com aquilo que é tido como normal e forçar, direta ou indiretamente, que toda uma população siga o mesmo caminho, não estamos nós também produzindo indivíduos que, por não saberem para onde ir, acabam por terem um surto e poderem desenvolver alguma condição psicológica? O pensamento atual ainda tem um determinado bloqueio em tornar como parte de si também aquilo que não segue o padrão do que é considerado normal. Não é apenas aceitar as novas formas de ser e de pensar, mas tomar como parte da sociedade e incluir como pertencente a esta. Isso faria com que mais assuntos pudessem ser discutidos abertamente e outras ideias pudessem ter espaço para crescer e desenvolver um espaço mais saudável mentalmente para viver, contrariando essa "produção" de transtornos que pode ser notada sutilmente hoje em dia. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Luiza. As grandes viajantes: a volta ao mundo de Nellie Bly. Disponível em: <http://www.360meridianos.com/2014/08/grandes-viajantes-nellie-bly.html>. Acesso em 16 out. 2017. RABELLO, Lucas. A internaram em um hospital psiquiátrico e jogaram a chave. Sua verdadeira identidade salvou sua vida. Disponível em: <https://misteriosdomundo.org/a-internaram-em-um-hospital-psiquiatrico-e-jogaram-a-chave-sua-verdadeira-identidade-salvou-sua-vida/>. Acesso em 17 out. 2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |