Artigo da colunista Paula Yurie Abiko no sala de aula criminal, vale a leitura! ''O caso mencionado infelizmente não é o único e tampouco será o último se a presunção de inocência não for observada, o trânsito em julgado e o respeito as garantias individuais, e nas condições atuais, apenas contribui para ilegalidades e abusos''. Por Paula Yurie Abiko Recente caso no estado do Ceará chamou a atenção, mas infelizmente não é algo difícil de ocorrer no sistema de (in)justiça criminal brasileiro. Cícero José de Melo ficou preso 16 anos por um crime que não cometeu, e sem encontrar no sistema um processo em andamento com o seu nome. Em entrevista concedida ressaltou: “Passei 16 anos preso injusto. Eu servi o Exército. Meu sonho era colocar meu filho no Colégio Militar. E esse sonho tiraram de mim. Eu me senti péssimo. É difícil a pessoa se manter no Sistema Penitenciário com pessoas que cometeram crimes, e eu sem ter cometido. Jamais eu ia mentir, se eu tivesse cometido um crime, eu diria. Quem comete um crime tem mesmo que pagar pelo que fez”, acrescentou o pedreiro. Conforme os dados do Conselho Nacional de Justiça expostos no gráfico abaixo, pouco mais de 30% dos indivíduos privados de liberdade hoje no país possuem condenação definitiva, não concretizando o que dispõe a Constituição Federal sobre a presunção de inocência, e a condenação apenas após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A não observância do trânsito em julgado e presunção de inocência na execução penal, aumentam as chances de erros demasiado grosseiros e injustos como o de Cícero, e tempo de vida não devolve-se, ainda mais no sistema prisional brasileiro com toda a carência de recursos básicos para a manutenção digna dos apenados privados de liberdade.
Em detrimento disso, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC nº 136.961, de Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, concedeu prazo em dobro no período que o apenado permaneceu em estabelecimento prisional em condições degradantes. O Habeas Corpus fora impetrado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, e o entendimento baseado na Resolução da Corte Interamericana de direitos humanos. Conforme a ementa:
Decisão muito importante possibilitando aos apenados atingir os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão de progressão de regime, livramento condicional e saídas temporárias, em um sistema que mostra-se ineficaz. Na obra de Kafka: Na colônia penal, um trecho emblemático traduz o que ocorre em demasiados casos cotidianos, processos sem a preocupação de tutelar os direitos fundamentais dos indivíduos, mitigam os direitos individuais recorrentemente. Ressalta KAFKA (2019, p. 36) no início da novela: – Ele conhece a sentença? – Não, disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações. Mas o explorador interrompeu: – Ele não conhece a própria sentença? – Não, repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse: – Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne. O artigo 63 da Convenção Americana de direitos humanos dispõe: ‘’1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegido nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada. 2. Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinente. Se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão’’. A decisão recente do Superior Tribunal de Justiça observou o que dispõe o artigo 63 da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como as condições degradantes no qual estavam os apenados no habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O princípio da humanidade na execução penal, é previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Americana de direitos humanos, ressaltando ROIG, (2018, p. 18): ‘’Em sede de execução penal, o princípio funciona como elemento de contenção da irracionalidade do poder punitivo, materializando-se na proibição de tortura e tratamento cruel e degradante (art. 5º, III, da CF), na própria individualização da pena (art. 5º, XLVI) e na proibição das penas de morte, cruéis ou perpétuas (art. 5º, XLVII)’’. Importante a previsão de indenização nos casos concretos também, em que pese o tempo perdido diante de uma injustiça seja difícil de recuperar. A aplicação da legislação penal concomitante aos tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário mostra-se fundamental para minimizar o caos exposto no sistema prisional brasileiro. Ainda, o artigo 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos, também prevê a necessidade de seguir o disposto pela legislação aos países signatários: ‘’1. Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes. 2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentença contra o Estado’’. O caso mencionado infelizmente não é o único e tampouco será o último se a presunção de inocência não for observada, o trânsito em julgado e o respeito as garantias individuais, e nas condições atuais, apenas contribui para ilegalidades e abusos. A presunção de inocência na complexidade de seu conceito é sempre questionada, ora entendendo-se pela necessidade do trânsito em julgado nas ações penais condenatórias, ora pela condenação em segunda instância. Atualmente, após o julgamento das ADC’S 43, 44 e 55 pelo Supremo Tribunal Federal, entendeu-se procedente a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, e portanto respeitando o trânsito em julgado. Essas mutações constitucionais e ausência de respeito aos direitos individuais, considerados cláusulas pétreas pela Constituição da República, derivam da base fundante do processo penal brasileiro inquisitorial, conforme salienta LOPES JR, (2019, p. 436 e 437): ‘’se considerarmos que nosso atual Código de Processo Penal, em sua Exposição de Motivos, idolatra o Código de Rocco que, por sua vez, foi elaborado por ninguém menos que VINCENZO MANZINI. A consciência desse complexo contexto histórico é fundante de uma posição crítica e extremamente preocupada com os níveis de eficácia dos direitos fundamentais previstos na Constituição e de difícil implementação num Código como o nosso’’. Ressalta FERRAJOLI (2006, p. 29) nesse sentido: ‘’a cárcel es entonces una institución al mismo tiempo iliberal, desigual, atípica, al menos en parte, extralegal y extrajudicial, lesiva de la dignidad de la persona, penosa e inútilmente aflictiva. Nacida del proyecto iluminista de mitigación y de racionalización de las penas, ella no parece a su vez idónea porque no es pertinente o porque es innecesaria para satisfacer ninguna de las dos razones que justifican la sanción penal: no la prevención de los delitos, dado el carácter criminógeno de las cárceles destinadas desde siempre a funcionar como escuelas de delincuencia y de reclutamiento de la criminalidade organizada’’. Em detrimento disso, é essencial que as garantias individuais sejam respeitadas, a Constituição Federal e os direitos fundamentais, pois o recrudescimento do poder punitivo sem essa observância tende a repetir cada dia mais casos como os de Cícero e tantos outros que já carregaram o peso do cárcere nos ombros. Paula Yurie Abiko Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ABDCONST). Pós graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Membro do GEA - Grupo de estudos avançados, teoria do delito (IBCCRIM), Membro do grupo de estudos avançados de justiça negocial (IBCCRIM), Membro do Neurolaw, grupo de estudos de direito penal e neurociências (Cnpq), Membro do NUPEJURI FAE (Cnpq), Membro do GEDIPI FAE, grupo de estudos de direito penal internacional (Cnpq), Colunista do Canal Ciências Criminais e Empório do Direito (Coluna Direito & Arte). Atua na Execução Penal da Defensoria Pública do Estado do Paraná. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERRAJOLI, Luigi. Garantismo Penal, Estudios Jurídicos, Série número 34, Universidad Nacional Autónoma de Méximo, 2006. KAFKA, Franz. O veredicto/ Na colônia penal. Tradução: Modesto Carone. São Paulo, Companhia das letras, 2019. LOPES JR, Aury, Direito processual penal, 16ª edição, São Paulo : Saraiva Educação, 2019. ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo : Saraiva Educação, 2018. Pedreiro é solto no Ceará após 16 anos preso por crime não cometeu, <https://siganoticias.net.br/2021/04/10/pedreiro-e-solto-no-ceara-apos-16-anos-preso-por-crime-que-nao-cometeu/>, acesso em 07 de maio de 2021. RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 136961 - RJ (2020/0284469-3), https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/5/B8802BCFF6021A_prisao-.pdf, acesso em 07 de maio de 2021. BRASIL, DECRETO No 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992, Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm, acesso em 07 de maio de 2021.
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