Artigo dos Colunistas Paulo Silas Filho e Khalil Aquim, vale a leitura! '' O princípio nemo tenetur se detegere tem sua previsão expressa em tratados internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14, 3.g) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2.g), e também, no âmbito interno, na Constituição da República, em seu art. 5º, LXIII, tratando-se assim de pedra angular ao sistema processual penal, uma vez que ancorado em matizes de ordem democrática que rompem com um paradigma nefasto no qual o Estado além de tomar o corpo do indivíduo, busca uma apreensão em sua totalidade, intentanto assim tolher inclusive a subjetividade do sujeito''. Por Paulo Silas Filho e Khalil Aquim Nos últimos dias, foi amplamente divulgado nas redes sociais um vídeo de uma audiência de instrução e julgamento onde, no momento da realização do interrogatório, o réu manifestou seu desejo de responder apenas às perguntas formuladas por seu advogado, recusando-se a responder aos questionamentos da magistrada e do representante ministerial. O que tornou o vídeo viral, porém, foi a manifestação da juíza, que indeferiu o requerimento feito pelo réu e seu defensor, afirmando que o direito ao silêncio não pode ser parcial, de modo que ou o acusado responderia a todas as perguntas, de todos os envolvidos, ou não falaria em absoluto.
A partir disso, questiona-se: pode o réu se valer do direito ao silêncio de forma seletiva? Ou está correta a magistrada no caso em questão? Para melhor analisar o caso, imperativo compreender melhor o direito ao silêncio. O princípio nemo tenetur se detegere tem sua previsão expressa em tratados internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14, 3.g) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2.g), e também, no âmbito interno, na Constituição da República, em seu art. 5º, LXIII, tratando-se assim de pedra angular ao sistema processual penal, uma vez que ancorado em matizes de ordem democrática que rompem com um paradigma nefasto no qual o Estado além de tomar o corpo do indivíduo, busca uma apreensão em sua totalidade, intentanto assim tolher inclusive a subjetividade do sujeito. Daí que o nemo tenetur se detegere, dentre suas razões tantas, protege o indivíduo contra investidas desmedidas do Estado na malograda busca pela verdade que alguns acreditam ser real, mesmo porque “pode-se dizer que no processo se continua a tentar dar conhecimento a quem não tem, de modo que se possa julgar” (COUTINHO, 2017, p. 57). A despeito do tratamento conferido ao interrogatório em perspectiva inquisitorial na vigência da redação original do Código de Processo Penal, em que o interrogatório era o primeiro ato do processo e seu silêncio poderia ser utilizado em seu desfavor, desde 2003 o cenário é absolutamente distinto. Assim, fato é que, pelo menos no aspecto normativo, houve notória mudança paradigmática no que diz respeito à observância ao contraditório e a ampla defesa, em que pese se tenha ainda fortemente presente, como que arraigada na cultura jurídica brasileira, aquilo que pode ser compreendido como mentalidade inquisitória, tendo-se assim que “a lógica inquisitorial presente nos operadores do direito (e demais envolvidos) é o grande problema para a real superação do sistema inquisitório, bem como para a efetiva consolidação do sistema acusatório” (POLI, 2017, p. 113), a qual segue operante e pode ser observada nas não tão raras violações aos direitos e garantias fundamentais do acusado, tal como quando da não observação daquilo que realmente constitui o nemo tenetur se detegere. A partir do advento da Lei nº 10.792/2003, o interrogatório definitivamente deixa de ser objeto da tutela judicial, passando a ser meio de defesa, que pode ser utilizado como meio de prova. Sendo, portanto, meio de defesa, é plenamente possível abrir mão de parte de seu direito de defesa, exercendo seu direito ao silêncio com relação às perguntas do juiz, do Ministério Público, a advogados de corréus e a sua própria defesa. Tal apontamento se revela expresso na atual redação do art. 186: o acusado será informado de seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. A análise é de corolário lógico. Se o interrogatório é meio de defesa, e o réu tem direito a não responder perguntas, o acusado tem direito de escolher quais perguntas não responder. E, assim sendo, se pode o acusado deixar de responder às perguntas que quiser, pode, evidentemente, deixar de responder às perguntas formuladas por qualquer dos agentes envolvidos, magistrado, representante ministerial, assistente de acusação, advogados de corréus ou seu próprio defensor - inclusive por economia processual, evitando-se o desgaste de se ouvir a formulação de todas as perguntas para, ao final da pergunta, deixar de respondê-la (fato plenamente possível, ainda que desnecessário). Assim sendo, o que se constata é que “apesar de toda a modulação operada por reformas pontuais e pela emergência de uma construção democrática “garantista”, a estrutura segue regida pelos mesmos elementos culturais inerentes à práxis inquisitória” (SILVEIRA, 2016, p. 71). Ao se tolher a possibilidade de se amparar legitimamente no princípio do nemo tenetur se detegere, negando ao acusado o direito de responder às perguntas que pretende e deixando de responder à outras, a apontada mentalidade inquisitória mostra sua faceta que ainda reside sob os escombros de um pretenso processo penal verdadeiramente democrático. Eis o grande e verdadeiro problema a ser superado: a lógica inquisitorial que insiste em permanecer na cultura jurídica processual penal. Khalil Vieira Proença Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI) Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018). Paulo Silas Filho Mestre em Direito Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica Professor de Processo Penal, Direito Penal e Criminologia (UNINTER e UnC) Advogado Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da APACRIMI E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Os Sistemas Processuais Agonizam? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Orgs.) Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália. Volume 2. Empório do Direito: Florianópolis, 2017. POLI, Camilin Marcie de. Acusatório de corpo e inquisitório de alma: quando a prática desdiz a lei. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Orgs.) Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália. Volume 2. Empório do Direito: Florianópolis, 2017. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A cultura inquisitória vigente e a origem autoritária do código de processo penal brasileiro. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Orgs.) Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: anais do congresso internacional “diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália”. Volume 1. Empório do Direito: Florianópolis, 2016.
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