Pretendo, iniciando hoje e prosseguindo nas próximas semanas, trazer a leitura de alguns contos de Stephen King a fim de observar, pela literatura, situações onde “pessoas comuns”, ou até mesmo aquelas que costuma se apontar como “pessoas de bem”, acabam envolvidas na prática de crimes - pelos mais variados motivos.
Stephen King é um escritor que costuma minimizar a dicotomia “vilão” e “mocinho” em suas histórias. Não que não haja em seus livros as personagens “boas” e “más”, bastando lembrar das várias personalidades “do mal” que se tornaram clássicas no mundo do terror e fantasia a partir de sua literatura (Pennywise (“IT”), Jack Torrance (“O Iluminado”), Annie Wilkes (“Misery”), homem de preto (“A Torre Negra”)...). Entretanto, King é um autor que escreve a partir de uma perspectiva do “real” da conduta humana – no sentido de estabelecer ações e pensamentos das personagens que compõem suas histórias com base naquilo que as pessoas de fato fazem e pensam, por mais duro que isso possa parecer. É nesse sentido que digo que a ambivalência do bem e mal é não necessariamente relativizada na escrita de Stephen King, mas até mesmo aqueles que são apresentados como “do bem” costumam ter a própria faceta humana interior desvelada nas linhas de seus livros, a qual não necessariamente é tão “boazinha” como costuma transparecer. Stephen King deixa isso claro numa das suas várias notas em prefácios, posfácios e afins, evidenciando que despreza o ignorar da verdadeira natureza humana na literatura
Se assassinos ajudam velhinhas a atravessarem a rua, estudantes ingênuas também podem matar vários de seus colegas e professores e destruir toda uma cidade. Lembram de Carrie? Dito isso, trago aqui a intrigante história contada em “1922”, primeiro conto do livro “Escuridão Total sem Estrelas”, a qual foi também recentemente adaptada para um filme do Netflix. Nesse livro, em todos os quatro contos, o autor narra histórias que se inserem dentro da temática proposta no presente escrito: pessoas comuns que, por alguma razão, acabam praticando crimes. Em “1922” temos o agricultor Wilfred que acaba se vendo num grande entrave com sua esposa. Wilfred ama suas terras. Sua vida é ali, na área rural em que trabalha e reside, afastado de tudo e de todos. Sua alegria aumenta quando a esposa recebe como herança um grande pedaço de terra que é vizinho àquele que a família ocupa. Suas plantações podem agora ser aumentadas, expandindo o usufruir daquilo que a terra dá. No entanto, a esposa de Wilfred não possui os mesmos planos. Arlette intenciona vender tudo e se mudar para a cidade. Vida nova. Novos ares. O campo não é mais a resposta para uma vida plena. Por isso vender tudo e comprar uma casa na cidade é a resposta para um viver melhor. É daí que surge o embate entre marido e mulher, cujo casal possui um filho que se vê em meio a toda a aflição das brigas e discussões sobre o que fazer com as terras. A indignação com a proposta da esposa é tanta que Wilfred, não aceitando a hipótese de ter que sair do campo, planeja matar a própria esposa. Pior, convence seu filho para que auxilie em sua empreitada criminosa. E assim procedem: após permitir que Arlette se embebede com vinho, durante seu repouso noturno, Wilfred e o filho entram no seu quarto e colocam em prática o plano indigesto, matando a própria esposa e mãe, cortando seu pescoço. Com isso, Wilfred impede que a mudança para a cidade aconteça, substituindo a paz de espírito (sua e de seu filho) pela garantia de uma vida plena no campo. A trama é rica e complexa. Por mais que se trate de um conto de cento e cinquenta páginas, Stephen King consegue transmitir com riqueza todo o horror que assola a história como um todo: como pode um marido matar a própria esposa por um motivo tão mesquinho? Como pode o filho ter concordado em participar do crime? Por mais que a história tenha uma parcela de sobrenatural (acham mesmo que a esposa permaneceria morta numa história de Stephen King?), a trama em si é “real”, dura e cruel – tal qual a vida é. Crimes acontecem e são praticados pelos mais variados motivos – podendo ou não serem compreendidos. “1922” esmiúça o íntimo humano no sentido de explicar (e não justificar) as razões pelas quais pessoas comuns cometem crimes – inclusive os mais graves. A leitura do conto é interessante nesse ponto de se expor o porquê. Não cabe aqui um resumo das motivações de Wilfred e seu filho para terem feito o que fizeram – registrando a sugestão de leitura do conto. Mesmo sendo deploráveis a conduta de ambos os assassinos, Stephen King consegue demonstrar que por influências diferentes pai e filho se uniram numa mesma empreitada criminosa. A resposta repreensível deveria se dar de igual modo para os dois? “Pessoas comuns” que praticam crimes, ou que respondem de certa maneira quando tem contra si praticado algum crime, causam surpresa quando os fatos se tornam notórios. Talvez o espanto seria menor se essa categoria de “pessoas comuns” fosse refletida mais criteriosamente. O debate em cima disso é longo e até mesmo penoso. A literatura de Stephen King pode auxiliar a evidenciar e compreender isso, escancarando a verdadeira faceta humana que se esconde sob máscaras. Deixo aqui o convite para que me acompanhem nos próximos textos dessa série, contando com a participação, mediante o diálogo, de vocês. Até a próxima! Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR [1] KING, Stephen. Escuridão Total sem Estrelas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 388 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |