“Carrie, a Estranha” – uma das mais clássicas obras do terror literário. Responsável por algumas adaptações para o cinema, o primeiro livro de Stephen King seduz com uma história aparentemente simples: uma menina estranha que sofre constantemente tanto em casa, através de uma criação peculiar por sua mãe, quanto na escola, enquanto vítima de bullying, de uma hora para outra adquire (ou se dá conta) poderes sobrenaturais (que aos poucos vão demonstrando suas proporções), descarregando-os contra tudo e todos no desfecho da trama, num frenesi de terror e violência. O singelo então ganha ares vultuosos ao considerar a narrativa e o próprio enredo em si, resultando assim em seu estabelecimento no patamar de uma das maiores obras do gênero.
Carrie é uma menina tímida, criada sob o julgo religioso de sua mãe. A adjetivação que lhe é conferida decorre do seu jeito, cuja origem está justamente em seu lar. A mãe de Carrie não possui uma imagem muito aceitável na vizinhança, dados os seus jeitos e trejeitos. Pela forma com a qual educa a filha, a menina acaba conduzindo o seu agir de modo fechado, isolando-se do contato com as pessoas. Não que a menina não tenha vontade de fazer amigos, de namorar, de participar de festas. Mas some-se sua timidez, seu estilo e seu espírito fechado e angustiado com um bando de adolescentes no ambiente escolar, que o resultado é o sofrimento da garota decorrente das piadas de mau gosto, da perseguição e da sua não aceitação nos círculos de amizade. Stephen King conta que carregava a ideia da história desde o ensino médio, quando ansiava escrever um conto sobre uma menina com poderes telecinéticos após ter lido um artigo numa revista sobre um caso de poltergeist. Durante o processo de escrita, o autor foi atormentado por seus próprios fantasmas, a saber, duas meninas que conheceu na época do colégio, as quais sofreram duras perseguições dos colegas e acabaram por se transformar na Carrie da história. Como pontua Stephen King, “em toda turma há aquele bode expiatório, o que sempre sobra na dança das cadeiras, o que sempre acaba carregando o cartaz dizendo ME CHUTE, o que está por baixo na hierarquia social”[1]. Nos exemplos concretos que lhe deram base para formar a história, os seus fantasmas reais não chegaram sequer a completar muitos anos de vida, uma vez que uma delas morreu durante um ataque epiléptico e a outra se suicidou, enforcando-se no porão de casa. É por isso que Stephen King se sentiu compelido a escrever “Carrie, a Estranha”. Nas palavras do escritor: Esses eram os fantasmas que ficam tentando se enxerir em minha escrita, insistindo que eu os fundisse, de alguma forma, numa história que contasse o que poderia ter acontecido caso existisse mesmo uma energia telecinética (e pelo que sei, talvez exista). O que poderia ter acontecido se o mundo fosse tão justo quanto era cruel com as adolescentes. Em resumo, os fantasmas queriam que eu escrevesse um romance. Eis então que nasceu Carrie. No romance, que possui uma característica própria de escrita[2], Carrie vivencia tristes episódios em sua adolescência. “Carrie White come cocô”, consta rabiscado numa carteira do colégio. Durante um banho na escola, a garota menstrua, sem sequer imaginar o que ocorrera, uma vez que em durante toda a sua criação jamais lhe foi ensinado nada sobre o seu corpo. Suas colegas de classe presenciam a cena do sangue escorrendo pelas pernas de Carrie. “Pelo amor de Deus, Carrie, você ficou menstruada. Vá se limpar!”, “Você está sangrando! Você está sangrando, sua balofona idiota!” são as palavras de apoio que a menina recebe, além de também ser bombardeada com tampões e absorventes que eram atiradas por todas as garotas ali presentes. E é assim, disso para pior, que os abusos se dão em tom persecutório contra Carrie, a qual não pode contar nem mesmo com o apoio da mãe, já que a genitora a culpa pelo seu jeito de ser enquanto a acusa de ser uma obra do demônio, trancafiando a menina num pequeno armário e a obrigando a pedir perdão à Deus e suplicar pela salvação de sua alma. O desfecho do livro é bastante conhecido. Carrie se vê encantada por um rapaz. O garoto a convida para ser seu par no baile de formatura do colégio. A mãe tenta obstar a filha de ir até a festa, mas Carrie, que nesse momento já começa a demonstrar um pouco de ciência e controle sobre seus poderes, é que impede que sua mãe a impeça de sair. A menina vai feliz para o baile, tendo uma noite agradável como jamais imaginou que pudesse ter. Pelo menos até certo momento. O que Carrie não sabia é que estava sendo vítima de mais uma brincadeira estúpida de seus colegas. O fato de ali estar havia sido previamente planejado. Ao ser anunciada como vencedora do prêmio de ‘melhor casal da festa de formatura’, Carrie sobre ao palco do salão para ser coroada como rainha do baile. Nesse momento, um balde com sangue de porco é virado do teto sobre sua cabeça, cobrindo todo o seu corpo com aquele líquido vermelho. Escárnio. Risos. Dedos apontados. Eis o golpe final que sofrera de seus colegas. E é aqui que a explosão acontece. O grande final acaba sendo proporcionado pela até então vítima, quando Carrie libera ao máximo os seus poderes naquele momento de extrema raiva e angústia. A vingança acontece por meio de explosões, incêndios e muitos corpos lançados mortos ao chão. Um verdadeiro caos. Foi assim que Stephen King respondeu ao questionamento que fizera a si mesmo. Caso tivesse poderes, seria dessa forma que, em dado momento, uma adolescente vítima de bullying responderia contra as agressões sofridas. A retorsão da personagem é desproporcional. Mas até que ponto e de que modo Carrie poderia ser julgada pelos crimes que acabou cometendo? Teria sido influencia a agir como agiu? Foi compelida a devolver o mal com o mal? O transe ou torpor que tomou conta de si naquele momento extremo deveria ser levado em conta no estabelecimento de sua culpa? A vingança desmedida deveria ser analisada de que forma? Carrie é culpada? Afinal, sua mãe estava certa em tentar, de todos os meios, afastar Carrie da sociedade, mesmo que de maneira peculiar e extremada, uma vez que tinha conhecimento do poder sobrenatural de sua filha e que, certamente, uma hora isso aconteceria? Ficam as perguntas feitas a partir desse clássico de Stephen King, dos quais diversos questionamentos podem surgir a ponto de serem debatidos, tais como o bullying e a ideia de vingança. Seja como for, Carrie é uma menina simples, ou seja, desconsiderado o seu poder sobrenatural, é uma pessoa comum. De hora para outra, vê-se praticando crimes. É por assim ser que essa é mais uma história que se enquadra na série “narrativas de Stephen King” aqui do Sala de Aula Criminal. Contando com a participação dos leitores para que o diálogo prossiga, encerro aqui a abordagem dessa obra. Até a próxima! Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR [1] KING, Stephen. Carrie, a Estranha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 12 [2] Há varias intercalações durante o livro, de modo que a história é “interrompida” por relatos pós-trama sobre os episódios que constam no próprio enredo. É um estilo de escrita que permite ao autor florear sua história com ares de veracidade, gerando um efeito narrativo próprio, uma vez que as interrupções se dão na forma de entrevistas, além de trechos de livros e matérias de jornais, onde personagens que viveram, conheceram ou tiveram algum tipo de contato com aquilo que acontece na história prestam seus depoimentos. Comments are closed.
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