Trago aqui mais um conto do livro “Escuridão Total Sem Estrelas”, de Stephen King: Extensão Justa. Dentre as leituras possíveis, creio que a história responda afirmativamente sobre a seguinte indagação: a inveja mata?
Nessa história de Stephen King, a inveja mata e desgraça a vida alheia. "Extensão Justa" é o terceiro conto da obra em comento, o qual conta a história de um doente terminal, Dave Streeter, que se depara com um peculiar vendedor de beira de estrada e recebe uma proposta inusitada: uma extensão de seu tempo de vida em troca de um percentual de seus ganhos financeiros dos próximos anos. Há, entretanto, um porém na negociação: o câncer que aflige o comprador deve ser passado para alguém à sua escolha. Esse é o verdadeiro preço da transação. Num primeiro momento, Dave titubeia com a proposta. Não acha crível aquilo que está acontecendo. O vendedor deve ser apenas um louco de beira de estrada ou está meramente caçoando dele. Nem sabe ao certo o motivo de ter ali parado - talvez mais por uma força interna inexplicável que para ali o conduziu do que por curiosidade. Porém, há algo no olhar daquele vendedor que faz com que a desconfiança naquela transação vá cedendo. Aos poucos, a curiosidade de Dave vai aguçando a ponto de optar por se arriscar. Já não tem mais nada a perder mesmo. Assim, o negócio passa a ser discutido. Os termos estão postos. A doença de Dave se esvairá, resultando na extensão do tempo de vida adquirido em troca de uma parcela de seus rendimentos futuros, além, é claro, da escolha a ser feita sobre quem amargurará o sofrimento até então suportado pelo comprador. Dave, após pensar a respeito, aponta inusitadamente para alguém que lhe vem em mente: seu melhor amigo. Enquanto Dave suportou fracassos (ou pelo menos assim por ele entendidos como) ao longo de sua vida, seu melhor amigo apenas cresceu em todos os sentidos. Foi graças a um empréstimo que Dave fizera ao amigo que esse enriqueceu. A mulher que Dave sonhava em ter foi conquistada pelo amigo, resultando no casamento desses. O amigo de Dave sempre fora mais bonito. Enquanto o amigo se destacara em três esportes, Dave era apenas mais ou menos bom em minigolfe. Quando o amigo tivera dificuldades nos estudos, fora Dave quem lhe prestou auxilio, resultando no êxito do companheiro. Enfim, Dave lembra de tudo isso e relata ao vendedor, confessando que em verdade odeia o amigo. A inveja era óbvia, principalmente pelo fato de Dave acreditar que o amigo não merecia nada daquilo. Por mais que o amigo considerasse Dave um membro da família pelo carinho e pela amizade existentes, isso não era suficiente para conter toda a raiva que Dave nutria há tempos. Ao considerar tudo isso, não foi muito difícil para Dave escolher alguém para sofrer em seu lugar. Apontou para o amigo, questionando se ele teria câncer. “Não ele”, responde o vendedor. Mas o sofrimento seria garantido. Negócio fechado. Trato feito. Dave cumpre com as primeiras orientações que lhe são passadas. E, surpreendentemente, a extensão passa a funcionar, melhorando sua vida em todos os sentidos: o câncer é inexplicavelmente curado, uma promoção no trabalho é conquistada, viagens de férias postergadas são finalmente realizadas e muito mais. Ao mesmo tempo, Dave passa a receber notícias do curso de desgraça que a vida de seu amigo tomara: a esposa falece, o filho sofre um ataque cardíaco e fica com graves sequelas, suas finanças se esvaem após um escândalo sofrido em sua empresa, sua aparência de 35 anos muda para como se tivesse 60 – além dos diversos problemas de saúde que desenvolve, seus outros filhos sofrem com diversos tipos de problemas e sua vida pioria cada vez mais. Tudo isso, a melhora de um em troca da pioria de outro, para a tremenda satisfação de Dave. O protagonista não se sente nem um pouco culpado ou mesmo compadecido pela situação do amigo. A inveja que sempre nutriu por aquele que era considerado o seu melhor amigo não permitia espaço para compaixão. Vale lembrar que tudo foi fruto da escolha do próprio Dave. O vendedor da beira de estrada lhe apresentou os termos de forma cristalina, ou seja, ele sabia o que estava fazendo. E, após, o trato iniciar com o cumprimento, Dave jamais sentiu qualquer remorso. Muito pelo contrário: extasiava-se ao ver o amigo definhar. É por tudo isso que se diz que em “Extensão Justa” a inveja mata e desgraça. A inveja foi o fator motivador de uma escolha premeditada, que resultou em drásticas consequências em vidas alheias. Agindo de um modo próprio, Dave deu causa ao sofrimento de terceiros - sem se importar minimamente com isso, uma vez que aquela inveja, aquela raiva, aquela irresignação que nutriu por toda a sua vida contra o amigo não lhe permitia ver a coisa toda de outra maneira que não fosse como algo bom. Quantos crimes não possuem o fator inveja como mola propulsora para a sua prática? Acertadas ou não, o Código Penal prevê algumas das possíveis “motivações” ou fatores que influenciam na prática da conduta delituosa, ora como circunstâncias agravantes (artigo 61 do Código Penal), ora como circunstâncias atenuantes (artigo 65 do Código Penal), além de também prever sutações do tipo previstas na forma de casos de aumento de pena e qualificadoras (§ 2º do artigo 121 do Código Penal; inciso I do parágrafo único do artigo 122 do Código Penal; ... ) ou de diminuição de pena (§ 4º do artigo 129 do Código Penal). Assim, note-se que a legislação leva em conta alguns dos motivos possíveis do agente como ensejadores para a prática de determinados crimes. Um homicídio, por exemplo, poderia ser caracterizado como qualificado por motivo fútil (inciso II do § 2º do artigo 121 do Código Penal) caso o motivo do crime fosse a inveja que o assassino possuía de sua vítima. No caso de Dave, o pacto sobrenatural que realizou fez as vezes do trabalho sujo de desgraçar a vida de seu amigo, já que não precisou sujas as mãos – pelo menos não diretamente. Caso fosse responder por seus atos, na hipótese de ser possível lhe atribuir a responsabilidade pelos infortúnios sofridos por seu amigo, a inveja seria apontada como a motivação do crime. Sim, a inveja pode matar – de variadas formas! Stephen King nos mostra, em seu estilo próprio, que esse sentimento corrosivo que fere a alma pode acarretar em sérias consequências quando externalizado de maneira concreta. Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Referências KING, Stephen. Escuridão total sem estrelas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |