Nós, pessoas comuns, praticando crimes: narrativas de Stephen King – “Gigante do Volante”11/14/2017
O conto abordado no texto de hoje é o segundo do livro “Escuridão Total sem Estrelas”. Conforme adiantado no escrito anterior (ver aqui), nesse livro Stephen King intenciona apresentar situações nas quais “pessoas comuns” acabam por cometer crimes – pelas mais variadas razões. As personagens, quaisquer sejam, poderiam ser qualquer um de nós. Todo tipo de crime merece ser combatido de igual forma? A resposta estatal ao fenômeno ‘crime’ (considerando ou não toda a sua complexidade “estrutural”) deve se dar com a mesma força contra um mesmo fato, porém, em situações distintas? Há crimes justificáveis – para além de “explicáveis”? Em “Gigante do Volante”, Stephen King conta a história de uma famosa escritora, Tess, que é convidada para dar uma palestra numa biblioteca de uma cidade próxima. Apenas mais um evento de costume para a autora, o qual reúne diversos fãs ávidos para ouvir o que a criadora de uma série de livros tem a dizer sobre seu processo de escrita e sua vida pessoal. O valor proposto pela palestra é interessante, de modo que mesmo inicialmente pouco disposta, a escritora decide aceitar o convite e realiza a viagem profissional. O evento é um sucesso: diversos fãs fazendo as mesmas perguntas rotineiras, tirando fotos e pedindo autógrafos. O ambiente é agradável e a recepção é calorosa. Finda a reunião, a promotora do evento questiona, por curiosidade, qual o caminho que Tess fará para retornar para sua cidade. Dada a resposta, Tess recebe a sugestão de um atalho, o qual fará com que economize tempo em seu percurso de volta. Como a escritora pretende estar o quanto antes no conforto de sua casa, agradece e aceita a indicação do caminho, ignorando aquele indicado pelo seu GPS e rumando via o atalho ensinado. Durante a viagem de retorno, Tess se deparar com diversos entulhos na estrada, dos quais não consegue desviar, resultando num pequeno acidente com os pneus de seu veículo. Não resta alternativa que não encostar o veículo para realizar o conserto necessário. Pouco após assim agir, um veículo passa por ali e encosta a fim de prestar auxílio à escritora. O homem, que inicialmente assusta pelo seu grande porte (daí o “gigante do volante”), demonstra-se simpático e realmente disposta a ajudar. Entretanto, quando por pouco se dá conta, Tess é surpreendida pela investida violenta do homem que a ataca com um golpe, fazendo-a desmaiar. Tess acorda em um local desconhecido – bastante inóspito e aparentemente isolado. Atordoada, nota que está sendo estuprada por aquele homem que a abordou. A violência prossegue de uma maneira indescritível. Entre desmaios, Tess acorda novamente enquanto está sendo carregada pelo violentador. Dando-se conta que o estuprador acredita ter a matado, Tess se finge de morta, salvando assim sua própria vida, pois o “gigante do volante” coloca aquele corpo que crê estar inerte num local destinado às suas vítimas anteriores. A violência que permanece presente mesmo após o ato violento, têm início ali, enquanto Tess aguarda pela certeza de que seu agressor está ausente para que possa fugir – isso ao lado dos cadáveres de outras vítimas. A escritora dali sai com uma série de sensações e emoções indescritíveis. Opta por não relatar o ocorrido, dada toda a aflição que lhe acarretaria caso o crime viesse a se tornar público. Assim, disfarça da melhor maneira que consegue para poder retornar até a sua residência. Em casa, seu espírito está quebrantado. Seu interior e exterior estão arrasados. Impossível descrever o seu estado psicológico. Tess se alimenta, lava-se diversas vezes e deita em sua cama para repousar o quanto puder. Ao acordar, e após lavar-se diversas vezes novamente, Tess repassa em sua mente tudo o que lhe aconteceu – não apenas a violência sofrida, mas o antes dessa, quando tudo estava aparentemente bem. A escritora acha difícil não encontrar um sentido naquilo tudo. Não crê que o ocorrido foi fruto do mero acaso. Começa então a investigar melhor tudo o que lhe aconteceu nos dias anteriores. O acidente com seu veículo foi de fato um acidente? A indicação do atalho e o encontro com o estuprador foi uma mera coincidência? Existiu alguma ligação entre os eventos do dia anterior? Tess acaba descobrindo que não está paranoica. Tudo faz sentido quando se dá conta que nem mesmo sua palestra fugiu de um plano arquitetado para que o estupro e sua intentada morte fossem um resultado previamente estabelecido. É dessa constatação, somada a todo o seu estado psíquico pós-violência sofrida, que Tess decide por fazer justiça, mas a sua justiça, aquela que se faz com as próprias mãos. O resultado e o desfecho da história se dá com Tess se vingando dos responsáveis pelo seu estupro (além do estuprador, havia mais gente envolvida no plano criminoso), matando todos esses com disparos de uma arma que possui. A escritora vai atrás do “gigante do volante”, do seu irmão e de sua mãe, atirando em todos, pondo fim em sua vingança pela violência sofrida e fazendo assim sua própria justiça. A escritora se torna sua própria justiceira. É aqui que Stephen King constrói sua “ideia” e é sobre essa que estabeleço o diálogo no presente texto: Tess teve motivos para agir como agiu? Deveria ter procurado as autoridades para relatar o ocorrido? A vingança, num caso de estupro, se justifica? Notem que as perguntas, os questionamentos, as indagações, enfim, as reflexões possíveis são diversas, as quais considero mais importantes que as próprias eventuais respostas – as quais sequer pretendo dar. É aí que vejo como exitosa a escrita de Stephen King para além de todo o fascínio proporcionado por suas excelentes histórias. Situações drásticas trazidas para o comum, para o cotidiano, para a nossa própria casa muitas vezes. Qual resposta o direito daria para o caso de Tess? Poderia se falar em legítima defesa? Os meios necessários de forma moderada estariam ausentes, além de agressão não ser atual ou iminente, pois já finda. O tipo penal do exercício arbitrário das próprias razões seria aplicável ao considerar o justiçamento por conta? Certamente não, pois não há na situação em comento pretensão da vítima quando se trata de jus puniendi. Ter-se-ia então um crime premeditado? Poderia se falar em homicídio privilegiado ao se considerar as razões da conduta da escritora? Haveria alguma causa de exclusão da culpabilidade que isentasse Tess da eventual pena a ser imposta? De que modo a justiça poderia ser aplicada ao caso concreto? Até que ponto uma vítima de uma violência terrível é capaz de ir? A proposta dessa “série Stephen King” é justamente a de questionar, de trazer reflexões para o direito com base nas narrativas ficcionais do autor – tal como se observa em “Gigante do Volante”. Tess, de vítima, passou a ser assassina. Uma “pessoa comum” que entendeu, por razões específicas, ter o direito de fazer justiça por contra própria (ou não se achou em tal direito, mas optou por agir mesmo assim). Uma “pessoa comum” praticando crimes. “Gigante do Volante” nos faz pensar (e muito) sobre a situação da vítima numa situação de estupro - o antes, o durante e o depois. A narrativa é pesada e requer estômago – daí sua importância aqui destacada. Deixo aqui o convite para a leitura do conto e para o diálogo sobre as implicações possíveis para o campo jurídico a partir das reflexões sobre a história. Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] Comments are closed.
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