Contrariando a narrativa de crimes confessos trazidas para essa série aqui no “Sala de Aula Criminal”, trago hoje o caso de Andy Dufresne, um personagem que, por mais que condenado, merece o benefício da dúvida.
A primeira novela de “Quatro Estações”, de Stephen King, narra a história de Andy, contada por seu amigo do cárcere, Red. O amigo de Andy, que funciona como narrador da história, ao contrário de Andy, é assassino confesso. Logo no segundo parágrafo da novela, Red conta que fez uma apólice de seguros para sua esposa. Em seguida, sabotou o freio do veículo que ela conduziria. Contava com a morte de sua esposa, mas não com o fato de que no carro haviam como caronas uma vizinha e seu bebê. O automóvel acabou por se chocar contra uma estátua, explodindo em chamas. O crime posto em prática por Red ocasionou na morte de três pessoas, de modo que, quando acusado, acabou sendo condenado pelos três homicídios, tendo recebido a pena de três prisões perpétuas. A primeira reflexão interessante que pode se extrair da obra é quando Red fala implicitamente em uma das finalidades da pena. Após confessar seu crime ao leitor e informar que já há tempos estava preso, com raras chances de conseguir uma liberdade condicional, Red diz: “Vocês perguntam se me reabilitei? Nem sei o que quer dizer essa palavra, em termos de prisão e castigos. Acho que é palavra de político. Pode ter algum outro significado e pode ser que eu venha a ter uma chance de descobrir, mas isso faz parte do futuro... uma coisa sobre a qual os presos aprendem a não pensar”[1]. O enfoque, porém, é no protagonista da história. Red conta que Andy foi também acusado e condenado por matar a esposa. Mas a situação e o contexto foram diversos do seu caso. Segundo a acusação, Andy teria descoberto que sua esposa vinha o traindo. Eis o fator apontado como motivação para o crime. O homicídio não fora praticado somente contra a mulher, mas também contra o amante. O julgamento de Andy foi daqueles típicos sensacionalistas. Embora reconhecida a gravidade do crime, montou-se um circo no Tribunal para espetacularizar o ocorrido. O efeito retórico da acusação, somados aos fatores midiáticos utilizados para incrementar o peso da imputação, ensejou naquele convencimento típico de processos que se situam no fenômeno do processo penal do espetáculo[2], ou seja, sem chances de o acusado ser absolvido. Red conta que, caso fosse um dos jurados no caso de Andy, também teria sido convencido pela acusação e votado pela condenação. O narrador fala ainda mais sobre como foi o julgamento: “Foi um processo dos diabos; um daqueles bem picantes com todos os ingredientes a que tinha direito. [...] A acusação foi rápida. O julgamento só demorou tanto porque o promotor estava planejando candidatar-se à Câmara dos Deputados e queria que os eleitores tivessem bastante tempo para olhar sua cara. Foi um espetáculo de circo forense; os espectadores formaram filas desde as quatro horas da manhã, apesar da temperatura abaixo de zero, para garantir seus lugares”[3]. O caso foi muito bem construído pela acusação. Em que pese as constantes e reiteradas negativas de Andy sobre as imputações que lhes foram feitas, declarando-se inocente, haviam muitos indícios que colocavam em dúvida a sua alegada inocência. Pouco tempo antes do crime, Andy havia comprado uma arma. O acusado descobrira que sua esposa estava o traindo. Após uma discussão entre o casal, a mulher de Andy saíra para passar a noite com o amante num bangalô alugado. Na manhã seguinte, a faxineira do local encontrou os corpos do casal de amantes inertes na cama, cada um tendo levado quatro tiros. A postura assumida por Andy durante seu julgamento também não o ajudou[4]. Confiante em demasia, uma vez que inocente, Andy respondia com desdém (por mais que não externalizado) as frívolas acusações que lhe eram dirigidas por meio dos questionamentos do promotor. As perguntas direcionadas ao acusado eram recebidas estoicamente. Andy as respondia calmamente – e até demais. Essa postura despreocupada não lhe ajudou muito, embora dificilmente fosse conseguir uma decisão em sentido diverso caso tivesse agido de outra forma – dado o contexto de espetacularização que assumiu o processo. Andy foi condenado. As circunstâncias do crime apontavam para si como a mais provável, se não a única, pessoa que tinha algum motivo para matar sua esposa e o amante dela. Mesmo com a dura sentença que recebera, Andy manteve sempre o seu espírito complacente. A amabilidade de seu ser permaneceu mesmo enquanto preso, pagando por um crime que jurava não ter cometido. O próprio Red, homem vivido naquele ambiente prisional, defendeu a inocência do amigo: “Durante todos os anos que passei em Shawshank, houve menos de dez homens nos quais acreditei quando me disseram que eram inocentes. Andy Dufresne foi um deles, embora eu só tenha me convencido de sua inocência ao longo dos anos”[5]. Andy passou então a viver naquele meio, no cárcere, sofrendo todas as mazelas inerentes do sistema. A pena que vinha pagando ultrapassava aquela imposta pelo Estado quando da sentença, pois sofrera vários tipos de violência naquele meio carcerário. Ainda assim, vivia o seu sonho de liberdade. Para quem não conhece ou ainda não lembrou dessa história de Stephen King, menciono o filme que foi produzido baseado na novela. Aí a recordação é mais fácil. “Um Sonho de Liberdade”, estrelado por Tim Robbins e Morgan Freeman, foi uma adaptação que fez jus ao conteúdo da obra na qual se baseou. Todo o sofrimento por qual passa Andy de forma resiliente, pode ser acompanhando pelo leitor ou telespectador. Ansiando esperançosamente pela liberdade, Andy enfrenta de modo complacente todas as adversidades do sistema prisional. Teria Andy praticado o crime pelo qual foi condenado? O homicídio, o crime que mais gera fascínio, questionamentos, reflexões, incompreensões, dúvidas, irresignações, frustrações, indignações, constitui um fenômeno à parte dos demais. Não apenas o ato de matar (ou não) em si, mas também a forma pela qual seu julgamento foi procedido, somado ainda à fase de execução da pena, são elementos presentes em “Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank”. Vale conferir! De crimes comuns e incomuns, praticados ou não por pessoas comuns e incomuns, a literatura de Stephen King está cheia. Fica o sempre convite para a imersão nas obras do autor, ensejando, sempre, além do prazer proporcionado pela leitura, em reflexões que podem ser proveitosas para o direito. Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] [1] KING, Stephen. Quatro Estações. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 16 [2] CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [3] KING, Stephen. Quatro Estações. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 19-20 [4] Alexandre Morais da Rosa, sobre a problemática de “quando o réu não se ajuda no processo”, vai dizer que “muitas vezes o acusado superestima a probabilidade de sucesso, crendo-se antecipadamente em versões ilusórias. O efeito do excesso de confiança é muito perigoso especialmente porque acreditam, do seu lugar de fora do meio processual penal, nas suas versões”. (ROSA, Alexandre Morais da. Quando o réu não se ajuda no processo, a coisa fica ingovernável. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-mai-02/diario-classe-quando-reu-nao-ajuda-processo-coisa-fica-ingovernavel>. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 22/01/2018) [5] Ibidem., p. 19 Comments are closed.
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