Para fechar com a obra “Escuridão Total Sem Estrelas” (veja sobre os três primeiros contos aqui, aqui e aqui), de Stephen King, trago aqui o último conto do livro como mote para mais um texto da série. Conforme já pontuado nos textos anteriores, no posfácio da obra em comento, King defende que a arte da narrativa ficcional é algo que deve ser levado a sério. E, de fato, essa defesa é totalmente válida e defensável, ainda mais quando considerado que a narrativa de ficção “é uma das formas vitais pelas quais tentamos compreender nossa vida e o mundo muitas vezes horrível que vemos à nossa volta”[1]. É justamente com base nessa perspectiva que o autor cria a maioria de suas histórias. Em “Um Bom Casamento” não é diferente.
No conto, temos ‘uma história de conivência com um segredo obscuro’. Essa forma aqui destacada de se resumir todo um caso complexo e delicado poderia estar estampada em manchetes de algum jornaleco do tipo sensacionalista ou situado no âmbito da imprensa ruim mesmo – tal como aquele denunciado por Umberto Eco em “Número Zero”[2]. Tergiversando, mas dentro do conteúdo aqui exposto, trago a fala de Alain de Botton sobre esse formato de transmissão de conteúdo por alguns jornais, quando exemplifica a problemática, por mais que num outro contexto, caso alguns clássicos da literatura fossem noticiados em manchetes desse tipo. “Imigrante enlouquecido de amor mata filha de senador” – seria o noticiar sobre “Otelo”, enquanto “Madame Bovary” teria “Adúltera consumista bebe arsênico por fraude em cartão de crédito” como manchete. Já “Édipo Rei” seria assim resumido: “Cego por fazer sexo com a mãe”. Diante disso, Botton vai dizer que:
E não é justamente isso? A coisa geralmente não acaba sendo mais complicada do que aparenta? No caso do conto de King, o autor relata que teve a ideia de escrevê-lo a partir de um caso real que leu em um artigo: Dennis Rader, que ficou conhecido como “assassino BTK”[4], assassinou dez pessoas (mulheres e crianças) ao longo de dezesseis anos. Paula Rader foi sua esposa durante trinta e quatro anos, sem jamais ter desconfiado dos crimes que seu marido praticara. Entretanto, muitas pessoas que viviam na área onde os assassinatos haviam sido praticados recusaram a acreditar que ela vivia com Dennis sem saber o que ele fazia. Stephen King, porém, acreditou, surgindo daí a ideia de criar “Um Bom Casamento”. Conforme conta o autor:
Vamos então ao conto para entender o que Stephen King quis transmitir. "Um Bom Casamento" narra a história de uma mulher, Darcy Anderson, que descobre, por acaso, a vida secreta de seu marido: Bob Anderson é um assassino serial famoso e procurado pela polícia. Ao procurar por pilhas na garagem, Darcy descobre um compartimento secreto onde seu marido guarda recordações dos crimes que praticou ao longo da vida. Cética de que tudo aquilo que encontrou pudesse ser verdade, Darcy aos poucos vai ligando os pontos de acordo com algumas vagas lembranças que possui sobre os nomes que encontra na bizarra caixa de seu marido. Sim, os nomes que ali encontrou pertenciam à vítimas de crimes violentos, tendo como responsável alguém que nunca havia sido encontrado e que há anos estava sendo procurado pela polícia - sem êxito na captura, uma vez que sequer se sabia o nome do criminoso. Após realizar algumas pesquisas na internet sobre os casos, Darcy confirma que algo de todas aquelas vítimas está naquela caixa que esbarrou por acidente. A conclusão é estarrecedora: seu marido, o amado e gentil Bob, é o famoso criminoso que nunca fora pego. A incredulidade, aos poucos, vai dando espaço para a razão. Todos os períodos em que os crimes foram cometidos coincidiam com datas em que o marido estava em viagem. Jamais houve motivo para qualquer tipo de desconfiança, uma vez que Bob era numismata, ou seja, viajar atrás de moedas antigas era parte de seu trabalho, de seu hobby, de sua vida. As evidências eram gritantes. A negação de Darcy era apenas um dos estágios da fatídica aceitação do óbvio: seu marido era um violentador, um assassino, um criminoso. Naquele mesmo dia, Bob telefona para casa, pois estava em viagem. Darcy tenta disfarçar sua angústia pela descoberta, não relatando nada ao marido. Bob, entretanto, percebe que há algo de errado, surpreendendo com seu retorno repentino no meio da noite. O susto de Darcy com o próprio despertar se dá mais pela surpresa do retorno antecipado do marido do que pela sua presença ali, na madrugada, ao lado da cama. Não há motivo para temor. Por mais que Darcy tivesse recém-descoberto um lado obscuro de seu marido, Bob jamais lhe fizera mal algum, e nem demonstrava ali, naquele momento, que mudaria algo em seu agir junto à esposa. Bob confessa todos os seus crimes. Mas o desespero estampado em seu rosto se dá mais devido a possibilidade de Darcy não o perdoar do que ser descoberto por todos e acabar sendo preso. Darcy a tudo ouve de maneira estoica. Muitas coisas passam pela sua cabeça, mas mantém sua pose íntegra – mesmo com a decepção da trágica descoberta. Bob implora por perdão, prometendo se controlar, ou seja, que jamais voltará a matar quem quer que seja. A decisão fica a cargo da esposa: perdoar, esquecendo o passado que até então sequer imaginava existir, apontando assim num futuro de controle do marido; ou entregar aquele que amou e foi seu companheiro durante toda a vida, a fim de que alguma forma de justiça, em algum nível de suas compreensões, fosse feita? Deixo a decisão de Darcy e, consequentemente, o desfecho da história, como um mistério[6]. O que interessa, para os fins aqui propostos, são aqueles dois pontos levantados por King em sua explicação sobre a criação da história: conhecemos realmente as pessoas? É possível conviver próximo de alguém durante tanto tempo enquanto se desconhece um segredo terrível dessa pessoa – tal como o do conto? Como dito, a coisa é geralmente mais complicada do que aparenta ser. Provavelmente, na hipótese de que o caso de Darcy caísse na mídia[7], burburinhos de todos os tipos surgiriam, situando a esposa enganada pelo segredo como conivente dos crimes. Mesmo que a mídia não assim a tratasse, desconfianças de todas as montas ganhariam corpo nos comentários dos curiosos, dos vizinhos, dos amigos e dos colegas de trabalho. Como pode se viver com alguém durante tanto tempo sem que se saiba que o companheiro é um assassino serial? E se, após a descoberta, Darcy mantivesse silêncio sobre a situação, incorreria em algum tipo de ilícito? O que deveria ser feito num caso como esse? Diante de tudo isso, indaga-se: Darcy mereceria ter sua história noticiada em uma manchete de poucas palavras? É possível julgá-la, qualquer tenha sido a sua decisão? O perigo de se dizer pouco sobre algo que merece mais é bem conhecido. A insuficiência pode ensejar em diversos equívocos. Porém, mesmo numa abordagem mais completa sobre determinado assunto, o tema está livre de incompreensões? É de se refletir. E Stephen King nos auxilia nisso com os seus intrigantes relatos sombrios. Pensemos. Até o próximo texto da série! Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR [1] KING, Stephen. Escuridão total sem estrelas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 387 [2] Já tivemos a oportunidade de trabalhar com a obra aqui no Sala Criminal: http://www.salacriminal.com/home/-os-ensinamentos-de-umberto-eco-sobre-a-imprensa-ruim [3] BOTTON, Alain de. Desejo de Status. Porto Alegre: L± Rio de Janeiro: Rocco, 2014. p. 146 [4] Bind, Torture and Kill [5] KING, Stephen. Escuridão total sem estrelas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 390 [6] Assim evito spoilers e dou um motivo para que a indicação do livro seja seguida pelos leitores. Além disso, a reflexão do presente texto se dá sobre a parte até aqui contada. [7] Vale lembrar que a história se baseou num caso real. Os comentários estão fechados.
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