Primeiramente, é importante observar que o termo “prevaricação” deriva do latim “praevaricatio” que, por sua vez, corresponde ao andar de maneira torta, tangente ao caminho correto. Neste sentido, leciona Paulo José da Costa Júnior e Fernando José da Costa:
Vale destacar que, pela mera leitura da origem da palavra, se constata que se está falando daquele que não age conforme deveria, para satisfação própria. Ademais, é de se destacar que o tipo penal previsto para tal situação – Artigo 319 do Código Penal – se assemelha à corrupção, já tratada em outros textos da presente coluna. Veja o disciplinado pelo Código Penal: Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.[2] O legislador, ao tratar da prevaricação, acabou por prever três “verbos” nucleares para identificação de eventual enquadramento, quais sejam, “retardar”, “deixar de praticar” e “praticar” ato, devendo-se atentar para elemento de extrema importância para configuração (ou não) de tal prática delituosa, a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Cumpre salientar que, em que pese em uma leitura rápida – como mencionado acima – possa tal tipo penal ser visto como se corrupção fosse, verifica-se que a diferença entre uma eventual corrupção passiva e a prevaricação deriva do fato de que na prevaricação o funcionário público não negocia com outrem, mas sim pratica o ato com o mero proveito próprio, ou, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci[3], ao tratar da análise do núcleo do tipo, se trata da chamada “autocorrupção própria”, assim, não se tem a vantagem indevida, o que demonstra, por si, a diferença da corrupção para a prevaricação. Feitas tais considerações, entendo salutar a visualização dos verbos caracterizadores de tal tipo penal, de modo a permitir a exata percepção dos casos onde pode haver enquadramento. Apenas para facilitar o entendimento relativo à prática de prevaricação, entendo por bem verificar o entendimento acerca da satisfação do interesse ou do sentimento pessoal, tal como previsto pelo artigo de lei acima mencionado. Para configuração de interesse pessoal, pode se ter em mente uma vantagem almejada pelo agente, não sendo necessariamente tal vantagem, de cunho econômico, enquanto que o sentimento pessoal pode ser observado através do sentimento tido pelo agente para com relação a quem for atingido por determinado ato praticado pelo funcionário público, ou seja, se o agente retarda ato para não prejudicar um amigo, ou o agiliza em detrimento de outros por tratar-se de um inimigo. Enfim, se vê uma flagrante diferença pela inexistência do oferecimento de vantagem por outrem ao funcionário público, mas sim o vislumbrar de uma vantagem pessoal do agente, pelo que, tal tipo penal não se confunde com corrupção, até porque a vantagem pessoal pode decorrer de atos que eventualmente viessem a ter reflexos contra o próprio funcionário público, como se verá no julgado analisado. Ademais, acerca do interesse ou sentimento pessoal abordado pelo artigo 319 do Código Penal, se constatam os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:
A partir disso, se deve atentar ao que se deve entender por ato de ofício, vez que tal tipo penal acaba por englobar, necessariamente o chamado “ato de ofício”, sendo de extrema importância o entendimento acerca do que o legislador quis entender por tal disciplina. Ocorre que, para tal entendimento, não se tem maiores dificuldades, vez que, pelo fato de tal tipo penal apenas poder ser praticado por funcionário público, o ato de ofício corresponde ao ato que o funcionário deve praticar por sua própria função, por exemplo, o dever do delegado instaurar inquérito ao tomar conhecimento da ocorrência de um crime de ação penal pública incondicionada. Assim, tem-se que o ato de ofício corresponde a própria atividade do funcionário público. Tendo por base o interesse ou sentimento pessoal, bem como o entendimento relativo a ato de ofício, torna-se mais facilitada a visualização dos verbos caracterizadores da ocorrência – ou não – de prevaricação. Veja que o artigo 319 do Código Penal, em um primeiro momento acaba por trazer como causa configuradora de prevaricação, o “retardar” indevidamente um ato de ofício. Acerca de tanto, se teria a figura do funcionário público que atrasa, procrastina, a realização de ato que deva praticar. Por sua vez, deixar de praticar é auto explicativo, vez que remete a ato omissivo do funcionário Público. Por fim, se vê a prática de ato contrário a disposição expressa em lei. Como exemplo deste último, poderia se mencionar a hipotética situação de um delegado que, ao término de um Inquérito o arquiva sem enviar ao Ministério Público e ao Juiz de Direito, em que pese a determinação legal, ou seja, praticou um ato de forma contrária a disposição expressa ao que a lei prevê. A partir de tais considerações acerca da forma de configuração da prática de prevaricação, entende-se relevante a visualização prática de tal preceito legal. Para tanto, menciona-se o julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais nos autos n.º 10343110009499001, publicado em meados de novembro de 2017:
Apenas para melhor visualização da configuração do crime de prevaricação analisado pelo julgado, vale trazer apontamentos breves aos fatos objetos de análise no processo. Tal caso decorre de um sujeito que acabou agredido por outro com uma pancada no crânio. Levado ao hospital público para atendimento de emergência, o médico plantonista apenas realizou a limpeza do local da pancada, efetuando a sutura (aplicando pontos), vindo a liberar o paciente. Alguns minutos após a liberação, os familiares retornaram com o sujeito já em óbito. Do que se constata do inteiro teor do acórdão, havia médico neurologista de plantão no hospital, bem como, a partir do depoimento de outros profissionais que lá estavam, os sintomas apresentados pelo paciente demonstravam a necessidade de atendimento mais cuidadoso (de acordo com testemunha, o sujeito desmaiou várias vezes, inclusive durante o atendimento médico), sem contar que o procedimento padrão do hospital seria manter pacientes com pancadas no crânio em determinado período de observação, além de passar por neurologista. Feitas tais considerações acerca do ocorrido, passa-se aos fatos que justificaram a condenação: do que se constata do inteiro teor da decisão, em que pese as questões abordadas acima, o médico supostamente deixou de explicitar o ocorrido e os procedimentos realizados em ficha de atendimento emergencial, sem contar que o profissional acabou por declarar o óbito do sujeito por causa diversa da pancada, sem encaminhar o corpo ao Instituto Médico Legal, agindo em contrário ao previsto por Resolução do Conselho Federal de Medicina (Resolução n.º 1.779/2005), vez que se tratava de morte violenta. Assim, no caso analisado, a configuração da prevaricação, a partir da análise do TJMG se deu pela constatação de que o então médico acusado, para encobrir negligência (satisfação de interesse pessoal), não praticou ato que deveria fazer de ofício ao não enviar o corpo da vítima ao IML para análise de médico legista, o qual deveria examinar o corpo e fornecer laudo conclusivo relativo a morte do sujeito, vez que decorrente de ato violento (pancada na cabeça causada por terceiro). Sem adentrar no caso em si - se os fatos ocorreram da forma narrada, ou se há acerto ou desacerto na decisão - mas tão somente no exposto na decisão com o ora abordado para configurar a prática de prevaricação, tem-se que esta pode se dar nos mais diversos setores, bem como das mais variadas formas, devendo-se levar em conta a análise específica do caso, com o extremo cuidado de se evitar injustiças, principalmente em se tratando de tipo penal onde a configuração pode se dar por critério extremamente subjetivo. Portanto, resta apresentada, ainda que de forma singela, os contornos para configuração da prática do crime de prevaricação, o qual, em que pese se assemelhe ao de corrupção, com este não se confunde, revestindo-se, de toda feita, de um crime de vasta verificação, pois infinitas as possibilidades de consumação, pelo que é crucial o cuidado de todos os operadores do direito que venham a se deparar com situação concreta, de modo a evitar quaisquer injustiças. Guilherme Zorzi Rosa Advogado Especialista em Direito Empresarial REFERÊNCIAS: - Código Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm - Acesso em 24.abr.2018. - JR., COSTA, Paulo da, COSTA, Fernando José. Curso de Direito Penal, 12ª EDIÇÃO. Saraiva, 07/2010. [Minha Biblioteca]. Cit. P. 902/903 Retirado de https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502135390/ - NUCCI, Guilherme Souza. Código Penal Comentado, 17ª edição. Forense, 02/2017. [Minha Biblioteca]. Retirado de https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530973865/ [1] JR., COSTA, Paulo da, COSTA, Fernando José. Curso de Direito Penal, 12ª EDIÇÃO. Saraiva, 07/2010. [Minha Biblioteca]. Cit. P. 902/903 Retirado de https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502135390/ [2] Código Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm - Acesso em 24.abr.2018. [3] NUCCI, Guilherme Souza. Código Penal Comentado, 17ª edição. Forense, 02/2017. [Minha Biblioteca]. Retirado de https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530973865/ [4] NUCCI, Guilherme Souza. Código Penal Comentado, 17ª edição. Forense, 02/2017. [Minha Biblioteca]. Retirado de https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530973865/ Comments are closed.
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