Recentemente escrevi um artigo aqui no Sala em que tratei da questão do ensino de Direito Penal I. Nele, além de tecer alguns comentários sobre qual a abordagem inicial da matéria possuiria maior consonância com os primados constitucionais relacionei algumas obras que poderiam servir de paradigma para este objetivo. A recepção ao artigo me surpreendeu, com agradecimentos e comentários de professores e alunos. Isso de certa forma motiva a escolha do tema para a coluna de hoje. O propósito é tratar agora do ensino de Criminologia nos cursos de Direito. Além de abordar a situação atual no modo como a matéria está distribuída na grade curricular da maioria das universidades, oferece-se também, como sugestão, uma pequena lista de obras para o embasamento do ensino de qualidade. Não é preciso esforço para perceber que o ensino de Criminologia não recebe muito prestígio em nossas instituições de ensino jurídico. Em grande parte, ele é ofertado como matéria optativa semestral. A exceção fica por conta de algumas universidades pioneiras, que estabelecerem períodos mais extensos para estes estudos, como a USP. Fato é que por muito tempo a Criminologia se viu inserida no rol de saberes a serem estudados unicamente no curso de Sociologia. Até hoje muitos entendem a Criminologia como mero “braço” teórico daquela. Não concordo com esta posição. Em que pese o fato da compreensão dos enunciados da Criminologia dependerem de um conhecimento sociológico profundo, não se pode dizer que o objeto de estudo seja exclusivo ou mesmo umbilicalmente ligado apenas com este ramo das ciências humanas. A Criminologia hoje se debruça sobre processos de criminalização primária e secundária. Em especial no estudo dos processos de criminalização primária (eleição de determinadas condutas como típicas e sua normativização) a contribuição da sociologia é reduzida se comparada a outros ramos do saber que alimentam esta linha de pesquisa. Filosofia política, economia política, teoria do direito e outros figuram como instrumental preponderante na análise desta faceta. Num segundo momento, no estudo dos processos de criminalização secundária não se pode negar que é a sociologia o grande fio condutor das pesquisas. Porém, é igualmente verdade que noções de psicologia, filosofia, antropologia e uma série de outros conhecimentos são fundamentais. Assim, resta claro que o estudo da Criminologia precisa figurar como parte substancial da grade curricular do curso de Direito. Cabe ressaltar que as conclusões produzidas pela Criminologia não possuem valor (teórico e prático) apenas para a formação de defensores públicos e advogados de defesa. Precisa-se relativizar a visão que enxerga dois polos absolutamente contrários no processo penal. Não cabe tratar disso aqui, mas pretender sustentar que o MP atua com valores e objetivos “contrários” à defesa é uma grave afronta ao Estado de Direito. Justamente por não ser assim que está superada a visão da ação penal como uma “lide”. Enfim, não nos afastemos da temática proposta aqui. Fato é que o estudo de Criminologia aumenta a compreensão de todos acerca da complexidade observada nas questões envolvendo as relações de poder, criminalização, punição, liberdade, conflituosidade social, impacto de políticas excludentes e muitos outros aspectos que precisam ser conhecidos por TODOS os que atuam no “cotidiano penal”, inclusive (quem sabe primordialmente) o juiz. Diante desta constatação é que se mostra preocupante o estado de coisas atual. A insignificância com que se introduz a cadeira de Criminologia nos cursos de direito acaba sendo funcional a uma estruturação ideológica que finda por reforçar os graves problemas diagnosticados no sistema penal: sua administrativização; o ativismo judicial inquisitivo; permissão de fundamentação com base em senso comum ou estatísticas; crença em conceitos processuais metafísicos (como a verdade real ou o homem médio); estigmatização do acusado; menosprezo pela palavra do acusado; forte tendência de permissão à execução por parte das agências de repressão; etc. Ninguém ganha com a baixa estima com que a Criminologia é considerada. Melhor dizendo, declaradamente ninguém ganha. A sociedade, considerada como corpo de indivíduos (não como maioria) não ganha. Assim, uma primeira luta na qual todos devemos nos engajar é a valorização da cadeira de Criminologia nos cursos de direito. Para isso, o ensino precisa ganhar em qualidade. Se alcança esse desiderato com bons professores e boas bases teóricas. Conversemos um pouco sobre o segundo ponto. Uma pesquisa mais profunda sobre o desenvolvimento contemporâneo da Criminologia permite concluir que estamos pobres. Em que sentido? A velocidade com que se traduz para o português obras relevantes nessa área, com base nas pesquisas mais recentes, é significativamente lenta. A fonte da qual se precisaria beber para acompanhar a evolução desta importante linha de estudos passa pela necessidade de acesso à língua inglesa (no mínimo). Sem dúvida isso é um problema grave já que sabemos que o corpo discente das instituições de ensino superior no Brasil é formado (regra regral) por pessoas que não possuem o hábito da leitura em idioma estrangeiro. Note: regra geral – constrói-se aqui um retrato “padrão” porque é o que interessa ao objetivo desta coluna. Ainda que muitos alunos conheçam o idioma inglês, percebe-se que poucos se sentem confortáveis com a leitura neste. Assim partimos de uma carência. Como superá-la ou ao menos suavizá-la? Os professores podem e devem assumir nisto um papel proativo. Ao se atualizarem ganham condições de oferecer aos alunos uma visão do que se está produzindo lá fora, fomentando o debate acerca de suas leituras na sala de aula. Significa isso que não existam bases dogmáticas para o ensino de Criminologia em português? De forma alguma. Há sim um rol significativo de material em nosso idioma, principalmente proveniente daquele que foi o período de “revolução” da Criminologia – o nascimento da Criminologia Crítica, que situaremos aqui para fins didáticos em meados do século XX. As descobertas que levaram ao “abandono” da Criminologia Etiológica ou Positivista podem ser compreendidas de forma clara através de diversos autores cujas produções estão disponíveis em português e isso é extremamente positivo. Isso por si só já permite uma compreensão clara da visão criminológica (crítica) acerca do fenômeno da criminalidade (percebida como processos de criminalização). Algumas obras neste sentido são relacionadas ao final deste artigo. Além deste ponto positivo o Brasil possui autores próprios que se debruçaram sobre o estudo da Criminologia e produziram textos de valor inestimável: Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista, Salo Carvalho e muitos outros. Não poderia deixar de citar o Prof. Mauricio S. Dieter, que me serve de referencial teórico. Um aviso precisa, contudo, ser dado. Nota-se uma profusão de produções em nosso idioma que se limitam a descrever o processo “histórico” da Criminologia e são denominados “manuais” ou “introduções” à esta. Sem desmerecer o estudo histórico sabe-se que ele possui sérios problemas didáticos. Ele cria ilusões, estupor e repetições. Ilusões porque faz parecer que uma linha de pensamento passou o “bastão” para outra num movimento progressivo suave, contínuo e determinado. Não foi assim e isso resulta em falsos conhecimentos (antítese intencional). Estupor porque leva a crença de que o conhecimento está posto. O que temos é isso aí. Não desperta o senso crítico. Repetições porque os alunos se preocupam em nada mais do que decorar determinados conceitos para reproduzi-los “na prova”. Perpetuam-se os dogmas, sem a criação de nada novo. Essa ressalva deve fazer nascer em nós um cuidado na seleção de guias teóricos de estudo. Ao chegar ao fim desta breve provocação acerca do tema, alistam-se abaixo algumas obras em português que podem servir de basilares úteis nos primeiros contatos com a fundamental área do conhecimento denominada Criminologia. O rol é meramente exemplificativo e sucinto. Há muito, muito mais. Com a aceitação do desafio da leitura em inglês o campo se expande violentamente, abrindo uma deliciosa oportunidade de aprendizagem em campos de conhecimento entusiasmantes! Obras fundamentais de Criminologia em português: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014. NOTA: toda a série “Pensamento Criminológico” da Editora Revan é essencial BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maia Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Fundamentos da criminologia crítica. Curitiba: Juruá, 2010 CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015. FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Curitiba: Lumen Juris, 2006. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, 2014. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Comments are closed.
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