O ABORTO NO EXERCÍCIO DA LIBERDADE POSITIVA: limites e possibilidades de uma análise prospectiva do Direito Penal na jurisdição constitucional brasileira PONTO DE PARTIDA: UMA BREVE LEMBRANÇA E UM ITINERÁRIO Conforme já abordamos no texto anterior, parte dos esforços envidados neste espaço será destinada ao exame da temática da liberdade em seus plúrimos sentidos, com particular atenção, nada obstante, às noções de liberdade positiva, liberdade substancial e autodeterminação em contraste com o trato reservado a tal tema pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional, que envelopa, ao seu passo, a operação do controle difuso e concentrado de constitucionalidade no Brasil. Nesse quadrante, cumpre rememorar que liberdade positiva expressa a autoafirmação da pessoa de acordo com as suas próprias compreensões, perspectiva que, se jungida à noção de autodeterminação, permite, em nosso sentir, que as escolhas realizadas pelos sujeitos sejam revestidas do devido conteúdo eficacial normativo para que sejam, de fato, tuteladas juridicamente. Daí emerge a ideia do contributo que a liberdade positiva (preenchida pela autodeterminação) pode prestar à livre construção da personalidade, dado correlato à dimensão prestacional do princípio da dignidade da pessoa humana, conceitos que exploramos, como dito, nas linhas anteriores ao presente texto.[1] Como forma de melhor dimensionar a análise pretendida, buscamos verticalizar a investigação do conjunto temático central em um espaço de aplicação prática e teórica. Inspirado como um primeiro passo, neste texto buscar-se-á evidenciar limites e possibilidades do debate sobre o aborto ao lume do conceito de liberdade ora propugnado, atentando especialmente para o enfrentamento concretizado, até o momento, pelo Supremo Tribunal Federal. Sem prejuízo disso, cumpre salientar ao leitor que o campo de aplicação ora eleito mostra-se extremamente crítico. É que na temática do aborto enfeixam-se diversas questões vincadas pelos mais densos matizes: posições religiosas e entraves morais servem de ponto de vista para consubstanciar um debate que, ainda hoje, mostra-se prejudicialmente polarizado entre “favoráveis” e “contrários” a tal prática. Assim, a abordagem a ser concretizada nas linhas seguintes vem imbuída de um intento distinto, que busca no conceito de liberdade positiva (e seu assento no espaço normativo constitucional) as lentes para a leitura aberta do aborto, refletindo sobre seus impactos na seara criminal e na construção da personalidade antes referida. Abre-se aí um diálogo interessante que parte dos pórticos do Direito Penal e do Direito Civil, sendo o objetivo do texto, então, ligar ambos os pórticos por meio da ponte normativa propiciada pelo Direito Constitucional. Porém, antes da necessária imersão, duas outras ressalvas fazem-se necessárias. A primeira diz respeito aos marcos teóricos utilizados neste texto. Paradoxalmente, apesar de ser um tema que inflama discussões, pouco foi escrito sobre o aborto nos últimos anos no Brasil - e do material existente, a sua quase totalidade vem subscrita por homens, perspectiva que bem ilustra os obstáculos postos ao posicionamento feminino no debate. Esse fator fez o texto debruçar-se, dentre outros autores, sobre as reflexões de Ronald Dworkin acerca do aborto e liberdades individuais, cristalizados na obra “Domínio da Vida”. Entretanto, o texto não busca “importar” as propostas dworkinianas para aplicação respectiva em paragens tupiniquis; em última medida, para que nossa embarcação pudesse mesmo singrar pelos mares tormentosos do debate sobre o aborto, as teorizações de Dworkin serviram-nos mais como vela, incentivada pelo sopro equivalente de outros marcos teóricos, do que como um motor único a nos impulsionar. Daí se extrai (ao menos como honesta intenção) a relevante pluralidade de perspectivas aptas a ler, com seriedade, as vicissitudes que preenchem o objeto eleito. De outra banda, a investigação realizada acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal contempla, por óbvio, os casos mais notórios oriundos da Corte sobre o aborto, tanto em via direta (como, mais recentemente, o Habeas Corpus nº 124.306/RJ, cujo voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso lançou luz novamente aos parâmetros de discussão no Brasil) como em via indireta (tal qual a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundatamento nº 54, que autorizou a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico). Portanto, uma vez enfrentadas as considerações preambulares necessárias, situamo-nos como Thomas Mann ao encerrar a explicação de seus propósitos iniciais antes de narrar a trajetória de Hans Castorp: “[...] Dito isso, comecemos!”[2]. O ABORTO ENTRE A REGULAÇÃO LEGAL INFRACONSTITUCIONAL E O EXERCÍCIO DA LIBERDADE POSITIVA É extremamente comum encontrar nas trincheiras em que se encampam os combatentes do aborto o argumento de que tal prática seria censurável por violar o direito à vida do feto. Tal perspectiva implica, quando menos, em duas ponderações distintas: de um lado, em aspecto dito “racional”, reconhecer-se-ia que o feto/nascituro poderia ser considerado como um sujeito de direito (polo referencial, portanto, de direitos e inserto, de modo expectativo, em uma relação jurídica) e por isso seria detentor do precitado direito à vida e de outros direitos da personalidade[3], em sintonia com a dicção do art. 2º do Código Civil brasileiro em vigor; de outro, em aspecto “moral”, reconhecer-se-ia que, independentemente do feto ser ou não um sujeito de direito, a vida humana congrega um valor próprio, ínsito a si, que deveria ser protegido. Tais ponderações contrárias ao aborto são nomeadas por Dworkin, respectivamente, de objeção derivativa (leia-se: da condição de sujeito de direito do feto decorre o dever de proteção do Estado) e objeção independente (ou seja: mesmo não sendo sujeito de direito, o feto seria um ser vivo e, portanto, tem sua vida um valor próprio que demandaria proteção estatal).[4] De uma ou de outra forma, é possível vislumbrar críticas concretas para ambas as ponderações acima apresentadas. E, quase sempre, tais críticas decorrem da própria sistematicidade provida pela legislação penal ao tema. É que, assim como se dá em outros ordenamentos que criminalizam o aborto, o Código Penal brasileiro, ao tipificar a conduta da gestante (art. 124) e de terceiros, como profissionais da medicina (arts. 125 e 126), prevê hipóteses exculpantes, como o aborto necessário para manter a integridade da gestante ou, ainda, quando a gravidez resulta de violência sexual (art. 128, incisos I e II). No entanto, é forçoso reconhecer que tais exculpantes chocam-se com as ponderações argumentativas daqueles que condenam o aborto. Utilizando a nomenclatura adotada por Dworkin, no caso da objeção derivativa, a falha é verificável no choque de direitos do feto (entendido como polo de relação jurídica) e da gestante. A solução adotada pelo legislador (em lógica que certamente não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988) foi fazer prevalecer o direito da gestante dentro dos limites do art. 128 do Código Penal, sem maiores pudores em derribar a condição de sujeito de direito do feto. Já no caso da objeção independente a solução é ainda mais grave: se toda vida possui um valor sagrado (como dizer parcela majoritária daqueles que condenam o aborto), em qualquer hipótese ela deveria ser protegida, devendo ser afastadas, portanto, as hipóteses exculpantes do art. 128 do Código Penal. Ademais, poder-se-ia cogitar ainda, como outra forma de incoerência, aqueles que condenam o aborto pela sacralidade da vida humana, mas apoiam, por exemplo, a adoção da pena de morte como forma de incrementar a efetividade do sistema punitivo. Tem-se aí uma clara “seletividade” sobre as ocasiões e oportunidades nas quais se apreende, de fato, a existência do “sagrado” na vida humana. Logo, tanto em uma como em outra hipótese, é possível identificar certa ausência de lógica para as argumentações comumente apresentadas com o fito de vetar o aborto. Anote-se, inclusive, que o Código Penal brasileiro, ao tipificar o aborto nos arts. 124 a 126, aparentemente externa a preferência pela dita objeção derivativa (pois o bem jurídico ali tutelado é a integridade do feto, concebido, como parece ser, na condição de sujeito de direito cujo nascimento com vida deve ser garantido) sem prejuízo das exculpantes já mencionadas. Diante deste quadro de incongruências, talvez seja este o momento adequado para elevar o debate sobre o aborto a um patamar que transcenda as referidas ponderações, privilegiando - ao menos no campo epistemológico jurídico - uma análise que leve em conta o aspecto normativo aplicável ao tema que decorre de nossa ordem constitucional: a possibilidade de livre construção da personalidade ensejada pela dimensão prestacional[5] que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana. E é justamente neste passo que se faz possível enfeixar a noção de liberdade positiva, amparada da autodeterminação e da liberdade substancial, no contexto que promove a tessitura dos embates sobre o aborto. Infere-se daí que encampar a questão do aborto no eixo do exercício construtivo da personalidade de cada pessoa implica em compreender tal conduta como um ato de vontade e de liberdade. Tratar-se-ia, portanto, de reconhecer que, muito embora a vida humana possua um valor ínsito, a escolha sobre a interrupção ou não de uma gestação - ao menos até um determinado período - caberia à gestante e não, por necessidade, à regulação legislativa infraconstitucional penal. Ademais, não se pode olvidar que todo traço das relações pessoais e intersubjetivas que venha a ser exaustivamente legislado (leia-se, regulado) equivale a total ausência de liberdade do indivíduo. Em outras palavras: onde há a interferência de regulação estatal não há, por consectário lógico, espaço concreto para o exercício da liberdade no sentido aqui propugnado. Todavia, para que o posicionamento ora adotado seja de fato compreendido, faz-se mister que se pondere os efeitos da liberdade positiva (vincada pela autodeterminação) se de fato estiver amparada e precedida pelo reconhecimento de uma liberdade substancial. Em tal contexto, que envelopa a livre escolha a ser promovida pela pessoa, é possível assumir que a noção de liberdade substancial pode contribuir para a efetivação da dimensão prestacional da dignidade da pessoa humana (e, por conseguinte, para a concretização da liberdade positiva), permitindo que cada sujeito, no exercício de suas escolhas, realize aquilo que repute como valoroso, consolidando um traço essencial da sobredita vida digna (desinente da dimensão prestacional da dignidade humana, como já informamos), cuja definição não pode, ao sujeito, ser imposta. Nessa ordem de ideias, a liberdade substancial, em conceito firmado por Amartya Sen, refere-se à possibilidade real do ser humano realizar e fazer o que valoriza a partir de um conjunto mínimo de capacidades que possui.[6] Tal conceito de liberdade é informado, como se pode depreender, por outros elementos subjacentes a si. Amartya Sen propõe que a liberdade substancial consiste na realização, pela pessoa, daquilo que ela valoriza, realização essa ensejada pelas capacidades que detém. Por capacidade, nesse cenário, entendem-se as “[...] combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível.”[7] A seu turno, tais funcionamentos representam o “[...] conjunto de coisas que alguém pode reputar como valioso fazer ou ter.”[8] Carlos Eduardo Pianovski elucida com precisão o encadeamento de ideias proposto por Amartya Sen da seguinte forma:
Verticalizando tais considerações ao tema em apreço, cada sujeito contempla, para si, um conjunto de perspectivas que qualifica como de valorosa realização (eis, então, os funcionamentos), sendo essa a base na qual se assentará a sua noção própria de vida digna. Dentre essas perspectivas de valor, podemos encontrar a decisão da gestante de levar ou não a efeito a gestação. Sendo factível a realização de tal escolha, erige-se o conjunto capacitatório, ou de capacidades, referidos por Amartya Sen, que constitui, por conseguinte, a liberdade substancial promovida inicialmente pela factibilidade de eleição (ou seja, pela possibilidade verdadeira e efetiva da realização de escolhas sobre a gestação em si) promovida também por meio do auxílio da dimensão prestacional da dignidade da pessoa humana. É o exercício da liberdade substancial, portanto, que pode engendrar os mecanismos da liberdade positiva inserta na temática do aborto, transportando-o do campo da tutela penal e do trato legislativo infraconstitucional criminalizante (incentivados mais por discursos morais e religiosos que por razões jurídicas) para o espaço da autodeterminação reprodutiva da mulher e seu respectivo planejamento familiar.[10] O ponto de vista ora escudado, no entanto, não ignora a sensibilidade do tema e nem mesmo as ponderações/objeções que foram delineadas nas linhas anteriores. Evidente que não se pode dar uma resposta pronta e acabada sobre a compreensão do aborto no cenário jurídico nacional neste espaço, em razão de seus limites; mas isso não impede que o texto, de modo honesto, enfrente algumas questões espinhosas sobre o tema. É o que se fará adiante. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O ABORTO: ENFRENTAMENTO DIRETO E INDIRETO O tema do aborto, apesar de jamais ter saído integralmente de cena, ganhou especial fôlego em nosso país após o voto-vista subscrito pelo Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº 124.306/RJ, no qual, além de tratar do objeto do writ (concedendo a ordem para afastar a constrição de liberdade preventiva de acusados da interrupção ilícita da gestação), declarou, em sede de controle difuso, a inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre de duração. Pelas implicações polêmicas ensejadas pelo referido voto, algumas considerações se fazem pertinentes. É possível visualizar dois grandes fundamentos para o posicionamento adotado pelo Ministro Barroso no caso em tela: de um lado, não estariam presentes os requisitos estampados no art. 312 do Código de Processo Penal para decretação e manutenção da prisão preventiva dos pacientes (argumentação que, por si só, seria suficiente para a solução do caso concreto) e, de outro, a sobredita declaração de inconstitucionalidade ante a necessidade de se atribuir uma interpretação conforme a Constituição aos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal, que tipificam o crime de aborto no Brasil. Quanto à declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso manejado de ofício no referido writ, o Ministro Barroso colacionou as seguintes razões fundantes:
Em linhas gerais, a posição adotada neste texto ingressa em parcial sintonia com os fundamentos esposados no voto-vista do Ministro Barroso, justamente no que toca à violação da autonomia da mulher como espaço de liberdade existencial no qual o Estado não teria legitimidade de intervir. Assim, a autonomia referida pelo Ministro Barroso pode ser harmonizada com o ponto de vista aqui propugnado: a escolha pelo aborto até o primeiro trimestre da gestação exprime as legítimas capacidades e funcionamentos (utilizando a nomenclatura referida por Amartya Sen) da mulher em gerir o seu planejamento familiar (como algo que ela reputa como valoroso, amparada pela dimensão prestacional normativa da dignidade humana), sendo essa escolha, portanto, movimentada (concretizada) pela liberdade substancial e envelopada (protegida) pela força normativa desinente do reconhecimento da liberdade positiva. No entanto, especial polêmica foi reservada ao parâmetro temporal utilizado para balizar a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais que tipificam o aborto. Tanto na mídia como na comunidade jurídica se verificou uma ausência de entendimento sobre a dita “licitude” de interrupção voluntária da gravidez até o primeiro trimestre da gestação. Como se apontou alhures, a questão envolve o debate sobre o reconhecimento ou não da condição de sujeito de direito do feto: se ele já possui vida desde a concepção ou se tal status apenas se aperfeiçoa em determinado momento da gravidez, como a partir do seu terceiro mês, momento no qual o sistema nervoso já estaria formado em sua estrutura mais fundamental, fazendo do feto polo de sensações - em outras palavras, e talvez mais simples: a partir do terceiro mês, o feto já possuiria a capacidade de sentir e tal capacidade implicaria, a seu turno, na assunção de sua condição de ser vivo. Tal discussão é ainda muito presente, por exemplo, nos Estados Unidos, onde o debate sobre o aborto, tal qual ocorre aqui, é polarizado nas trincheiras pro choice (que valorizam a escolha da mulher) e pro life (que buscam a defesa da vida humana em todas as medidas). Aliás, cumpre ressaltar que esse mesmo tópico foi objeto de análise na Suprema Corte dos Estados Unidos quando do julgamento do caso Roe vs. Wade, em 1973. Por uma votação de sete a dois, a partir da contestação de uma lei do Texas, foi declarada a inconstitucionalidade de todas as leis estaduais que impedissem o aborto nos dois primeiros trimestres de gravidez. À época, o passo primeiro realizado na análise da decisão do caso Roe vs. Wade, apresentada pelo Justice Harry Blackmun, foi justamente averiguar se o feto seria mesmo um sujeito de direito - ou, nos termos da dicção norte-americana, uma pessoa constitucional. A resposta dada pelo Justice Blackmun foi negativa por identificar que, nos precedentes sobre os quais a decisão de Roe vs. Wade deveria necessariamente se apoiar, jamais houve o tratamento do feto como uma pessoa cujos direitos são tutelados pela Constituição, não ao menos até atingir o segundo trimestre da gestação, onde deixaria de ser considerado um feto (fetus) para ser tratado como pessoa (person). Logo, o aborto de um feto dito “prematuro” (“abortion of a quick fetus”), até o segundo trimestre da gravidez, não poderia ser proibido criminalmente: como os juristas que o precederam afirmaram, tal forma de aborto seria, quando muito, “a great misprision[13], and no murder” - uma ofensa, e não um assassinato.[14] Já o segundo - e quiçá principal - passo dado na decisão em tela diz respeito à possibilidade dos Estados interferirem na esfera de liberdade das pessoas para restringi-la de algum modo, algo somente autorizável, nos termos da Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, para que seja tutelado um interesse legítimo antagônico ao exercício da liberdade da pessoa. Tratar-se-ia, como bem apontou Dworkin, da necessidade de encontrar uma razão inexorável para restringir a liberdade constitucionalmente assegurada.[15] E, novamente, a resposta dada pela Suprema Corte norte-americana, nos termos da decisão condutora do Justice Blackmun, foi negativa: não teriam os Estados a legitimidade de intervir na privacidade da gestante a fim de tolher a sua escolha sobre a continuidade ou não da gestação, principalmente se esta se encontrar em seu primeiro trimestre.[16] Emergem daí, portanto, algumas das razões para a adoção de parâmetro temporal contida no voto-vista do Ministro Barroso: até o terceiro mês de gestação, o ato de vontade da gestante em interromper a gravidez deve ser respeitado e não criminalizado ante, dentre as outras razões já elencadas, a não caracterização do feto como sujeito de direito em tal período. Outra oportunidade em que a jurisdição constitucional promovida pelo Supremo Tribunal Federal arrostou, ainda que lateralmente, a questão do aborto deu-se no julgamento, em abril de 2012, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (devidamente representada juridicamente pelo então advogado Luís Roberto Barroso). A ADPF foi proposta para promover interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128 do Código Penal em casos de gestação atingida por anencefalia, patologia que implicava em chance nula de sobrevida ao feto após o parto, bem como riscos físicos e psicológicos para as gestantes. Importa sublinhar que o “enfrentamento lateral” acima referido, que vinca a ADPF 54, decorre do fato de que, tecnicamente, em casos de anencefalia não há aborto, mas sim antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico, termo utilizado na exordial da arguição para evidenciar que, ante a ausência de atividade cerebral, o feto não poderia ser considerado como vivo, sendo incorreto, então, utilizar o termo “aborto” em tais casos. Não se trata de preciosismo etimológico; a rigor, o que se depreende é uma estratégia utilizada na exordial para demostrar a atipicidade objetiva da conduta de antecipar o parto em caso de anencefalia: como não atividade cerebral do feto e, portanto, não se pode considerá-lo como um ser vivo, não há que se falar da incidência dos tipos penais listados nos arts. 124 e 126 do Código Penal. Sem prejuízo disso, outro traço relevante da ADPF 54 foi o debate realizado pelo Supremo Tribunal Federal acerca da condição jurídica do nascituro, buscando entrever se a sua tutela dar-se-ia de modo absoluto (até por conta de uma interpretação literal do art. 2º do Código Civil de 2002) ou se tal atribuição de personalidade (ou seja, assunção da condição jurídica de sujeito de direito) dar-se-ia apenas em situações pontuais concretas. Acabou prevalecendo a segunda hipótese, até mesmo pela disposição expressa da Lei de Transplantes (Lei nº 9.434/1997) acerca da cessação de atividade cerebral como ausência de reações fisiológicas no organismo antes vivo. Bem por isso que hoje o critério legal para a decretação médica da morte de uma pessoa (e consequente legalidade de transplante de órgãos) é a presença de atividade cerebral.[17] POSSÍVEIS PONTOS DE CONCLUSÃO O azimute até aqui perseguido, apesar de breve, pode fazer assomar algumas conclusões. Primeiramente, resta bem evidenciado o assento normativo constitucional do qual exsurge o reconhecimento jurídico da liberdade positiva, balizada pela liberdade substancial e pela autodeterminação. Afinal, a Constituição Federal de 1988 guarda, como bem pontuou o Ministro Edson Fachin em seu período de cátedra, uma dimensão prospectiva[18], e é justamente desta dimensão prospectiva que se colhem os afazeres decorrentes da força normativa do texto constitucional. Nas palavras de Konrad Hesse, “[...]. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas [...]. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - , não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).”[19] Nesta ordem de ideias, faz-se possível compreender que as escolhas realizadas pelas pessoas decorrem daquilo que elas reputam como valoroso, fazendo parte de sua vida não apenas vivida, mas vivida dignamente, reconhecendo-se assim a dimensão prestacional do princípio da dignidade humana que impulsiona a satisfação da liberdade substancial e, se respeitada de fato a dita “vontade de Constituição” pelos responsáveis pela ordem constitucional, satisfará também a liberdade positiva ao se reconhecer que, das escolhas feitas pelas pessoas, em uma relação intersubjetiva de liberdade vivida com dignidade, projetam-se também efeitos normativos que devem ser respeitados e tutelados pelo Direito. A temática do aborto bem explicita essa problemática, ao mesmo passo que incita provocações e debates. De um Código Penal vetusto, que ignora a formatação plural das famílias hodiernas, abre-se espaço para uma nova leitura da interrupção da gestação não apenas mais no bojo da criminalização estigmatizante, mas também - e principalmente - no núcleo da autodeterminação da mulher e seu respectivo planejamento familiar. Neste espaço, o Estado não pode deter ampla legitimidade de interferência: a construção da personalidade se dá pela pessoa nas relações que trava com aqueles que estão ligados a si, e não na verticalização do aparato estatal. Foram ilustradas, portanto, possibilidades de enfrentamento do aborto sob o prisma da liberdade positiva, mas não se pode ignorar, de modo algum, que há também limites a ser respeitados. Tais limites surgem, ao nosso sentir, da atuação da jurisdição constitucional brasileira, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal - quiçá seja a Corte e o Poder Judiciário que devam exercer com maior comprometimento, dentre todas as instituições republicanas, a vontade de Constituição referida de modo tão caro por Konrad Hesse. Entretanto, as respostas dadas a tal enfrentamento ainda são inconclusivas, ainda que o espaço para novas ponderações permaneça em aberto, principalmente pela dimensão dada à discussão vertida no Habeas Corpus 124.306/RJ. O que agora se propõe é que também possui o Direito Penal uma constituição prospectiva[20], que passa (como exercício de caráter hermenêutico atento à força dos fatos e à realidade humana) pela recompreensão propositiva e transformadora de significados que se projetam dos significantes que marcam não apenas a codificação, mas sua interpretação e aplicação. Eis aí um desafio que não podemos nos furtar. Rafael Corrêa Professor de Direito Constitucional Mestre em direito das Relações Sociais REFERÊNCIAS BLACKMUND, William. Commentaries on the Laws of England. University of Adelaide. Disponível em: < https://ebooks.adelaide.edu.au/b/blackstone/william/comment/index.html>. CORRÊA, Rafael. Responsabilidade Civil e Privacidade. Autodeterminação informativa como expressão de liberdade positiva na construção da personalidade. 2016. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba: UFPR. DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. ______. Questões do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. MANN, Thomas. A Montanha Mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. HESSE, Konrad. Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Dignidade da pessoa humana. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin [Coord.] Direito Constitucional Brasileiro. Vol. I. Teoria da Constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. ______. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2011. RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia Privada e Direito ao Livre Planejamento Familiar. Como as escolhas se inserem no âmbito de autodeterminação dos indivíduos na realização do projeto parental? 2015. 221f. Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, Marcelo Sarsur Lucas da. Do direito a não sentir dor: fundamentos bioéticos e jurídicos do alívio da dor como direito fundamental. 2014. 141f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, Belo Horizonte. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 124.306/RJ. Voto-vista Ministro Luís Roberto Barroso. U.S. SUPREME COURT. Roe v. Wade. Disponível em: < http://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/410/113.html>. NOTAS: [1] Remetemos o leitor ao texto “Liberdade Positiva e Liberdade Substancial”, publicado em 16/01/2017 e disponibilizado no seguinte link: <http://www.salacriminal.com/home/liberdade-positiva-e-liberdade-substancial>. Os marcos teóricos que sustentam tais conceitos podem ser verificados também no texto ora referido. [2] MANN, Thomas. A Montanha Mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 07. [3] Aqui é importante que se tenha em mente a dimensão de relação jurídica ora apresentada, perspectiva importante não apenas para a compreensão dos direitos da personalidade na dogmática do direito civil, mas também em seu impacto no direito penal. Em nossa dissertação de mestrado, defendida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, sob orientação do Prof. Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, tivemos a oportunidade de refletir sobre esse conceito estático e já ultrapassado de relação jurídica: “Já no prefácio do monumental “Tratado de Direito Privado”, Pontes de Miranda assevera que, após a ideia de fato jurídico, a noção mais fundamental do direito é a de relação jurídica, porquanto somente se poderia falar em direitos subjetivos e seus titulares se ambos estivessem colocados no bojo de uma relação juridicamente reconhecida. Tal concepção se amolda, ao seu turno, à definição dogmatizante de relação jurídica como uma relação ocorrida na realidade fática e devidamente regulamentada pelo direito, onde se evidenciam direitos (como efeitos de determinadas faculdades potestativas) e deveres (enquanto anversos necessários e consectários de tal eficácia). [...] É no seio dessa definição mais estreita e estática de relação jurídica[3] que se inserem, seguindo o mesmo mapeamento ponteano, as noções de sujeito de direito e de direitos subjetivos, concepções caras às primeiras teorizações sistematizantes dos direitos da personalidade no século XIX.” CORRÊA, Rafael. Responsabilidade Civil e Privacidade. Autodeterminação informativa como expressão de liberdade positiva na construção da personalidade. 2016. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba: UFPR. [4] DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 13-14. [5] Acerca da compreensão adequada da dimensão prestacional da dignidade humana, remetemos o leitor ao contexto exposto no texto anterior: “A dignidade, como já assumido, estrutura-se como qualidade própria ao homem, na concretude de sua existência, exprimindo-se também a noção perceptível de vida digna que deve ser tutelada por meio de condutas proativas e positivas, passíveis de consolidação pelo Estado ou mesmo por particulares. Como bem pontua Carlos Eduardo Pianovski, ‘a normatividade assume a dignidade como qualidade inerente a cada ser humano concreto, e que antecede ao direito, e permite sua tutela inclusive por meio de prestações positivas.’.” CORRÊA, Rafael. Liberdade Positiva e Liberdade Substancial: dois sentidos e o desafio da jurisdição constitucional brasileira na tutela concreta da liberdade. Texto disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/liberdade-positiva-e-liberdade-substancial>. Recomendamos vivamente, ainda, por todos: PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Dignidade da pessoa humana. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin [Coord.] Direito Constitucional Brasileiro. Vol. I. Teoria da Constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. [6] SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 32. [7] Ibidem, p. 95. [8] Idem. [9] PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2011. p. 58. [10] Para o aprofundamento do tema do planejamento familiar como exercício de liberdade e direito fundamental ver, por todos: RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia Privada e Direito ao Livre Planejamento Familiar. Como as escolhas se inserem no âmbito de autodeterminação dos indivíduos na realização do projeto parental? 2015. 221f. Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte. [11] HC 124.306/RJ. Voto-vista Ministro Luís Roberto Barroso. Item 24. [12] HC 124.306/RJ. Voto-vista Ministro Luís Roberto Barroso. Item 27. [13] Importa salientar que, no vernáculo jurídico específico do direito anglo-saxão (que comumente aqui chamamos de legal english), misprision é um termo utilizado para designar ofensas menores que, apesar de reprováveis, não são consideradas como crime no sentido mais amplo (felony). Tal definição tornou-se difundida por William Blackmund, em seu Commentaries on the Laws of England. O conteúdo da obra, essencial para a compreensão do sistema da common law, principalmente na seara penal, pode ser encontrado no seguinte sítio virtual, disponibilizado pela University of Adelaide: < https://ebooks.adelaide.edu.au/b/blackstone/william/comment/index.html>. [14] Da exposição da decisão do caso Roe vs. Wade, de lavra do Justice Blackmun, colhe-se o seguinte: “It is undisputed that at common law, abortion performed before ‘quickening’ - the first recognizable movement of the fetus in utero, appearing usually from the 16th to the 18th week of pregnancy - was not an indictable offense. The absence [410 U.S. 113, 133] of a common-law crime for pre-quickening abortion appears to have developed from a confluence of earlier philosophical, theological, and civil and canon law concepts of when life begins. These disciplines variously approached the question in terms of the point at which the embryo or fetus became ‘formed’ or recognizably human, or in terms of when a ‘person’ came into being, that is, infused with a ‘soul’ or ‘animated.’ A loose consensus evolved in early English law that these events occurred at some point between conception and live birth. This was ‘mediate animation.’ Although [410 U.S. 113, 134] Christian theology and the canon law came to fix the point of animation at 40 days for a male and 80 days for a female, a view that persisted until the 19th century, there was otherwise little agreement about the precise time of formation or animation. There was agreement, however, that prior to this point the fetus was to be regarded as part of the mother, and its destruction, therefore, was not homicide. Due to continued uncertainty about the precise time when animation occurred, to the lack of any empirical basis for the 40-80-day view, and perhaps to Aquinas' definition of movement as one of the two first principles of life, Bracton focused upon quickening as the critical point. The significance of quickening was echoed by later common-law scholars and found its way into the received common law in this country. Whether abortion of a quick fetus was a felony at common law, or even a lesser crime, is still disputed. Bracton, writing early in the 13th century, thought it homicide. But the later and predominant view, following the great common-law scholars, has been that it was, at most, a lesser offense. In a frequently cited [410 U.S. 113, 135] passage, Coke took the position that abortion of a woman "quick with childe" is "a great misprision, and no murder." Blackstone followed, saying that while abortion after quickening had once been considered manslaughter (though not murder), "modern law" took a less severe view. A recent review of the common-law precedents argues, however, that those precedents contradict Coke and that even post-quickening abortion was never established as a common-law crime.” Roe v. Wade. Disponível em: < http://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/410/113.html>. [15] DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 144-145. [16] Relevante também são os votos dissidentes dos Justices Byron White e William Rehnquist, que discordaram da lapidação condutora promovida por Blackmun. Especial destaque, no entanto, cabe a Rehnquist, pautou seu posicionamento na conclusão de que o aborto não poderia ser tratado como um ato privado (private act) e que a interpretação proativa da Constituição (living Constitution) implicaria em uma atuação legislativa do Judiciário. [17] Sobre o tema, remetemos o leitor para interessante tese de doutoramento apresentada por Marcelo Sarsur Lucas da Silva para a Universidade Federal de Minas Gerais, na qual esposa o seguinte ponto de vista: “Não se cuida, nas hipóteses de feto anencefálico, de aborto, mas sim de antecipação terapêutica do parto, posto que o aborto, em seu sentido técnico-jurídico, implica a eliminação da vida intrauterina, fato que não ocorre quando apenas se permite a condução a termo da gravidez anencefálica, interrompendo o suporte vital oferecido pela gestante ao feto sem atividade encefálica própria. Esta distinção não é apenas semântica, posto que a interrupção da gravidez de feto com anencefalia não se confunde, como argumentam os opositores desta prática, ao aborto eugênico, feito para selecionar características do feto, ou para eliminar fetos dotados de deficiências físicas congênitas. Conforme salientou o Ministro Relator, Marco Aurélio Mello, ‘O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricolar ou inversões viscerais, enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. (BRASIL, 2012:48-49). Em igual sentido, a Resolução nº 1.989/2012, do Conselho Federal de Medicina, prevê que a gestante passará por antecipação terapêutica do parto, e não propriamente por aborto.’ [...] A discussão travada nos votos dos Ministros da Suprema Corte versou, especialmente, sobre a definição do que é a vida humana, enquanto objeto de proteção jurídica. Esta vida juridicamente protegida não coincide com todas as definições de vida humana presentes no discurso científico ou no senso comum. O argumento central adotado pelo voto condutor, e reproduzido pelos votos que a ele aderiram, parte de uma situação especial em que a vida humana deixa de existir, a despeito da persistência de reações fisiológicas: a morte cerebral, conceito empregado pela Lei de Transplantes (Lei Federal nº 9.434/1997). De fato, a ordem jurídica lida ambiguamente com os extremos da vida humana. Tanto o início quanto o final da vida humana são cercados de incompreensões, de modo que a pluralidade de concepções sobre a vida, mesmo em termos biológicos, acaba por se espelhar nos diferentes momentos em que a ordem jurídica estende sua proteção à vida humana.” SILVA, Marcelo Sarsur Lucas da. Do direito a não sentir dor: fundamentos bioéticos e jurídicos do alívio da dor como direito fundamental. 2014. 141f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, Belo Horizonte, p. 30-31. [18] Sobre as dimensões da Constituição, traz-se à baila a seguinte lição do Ministro Edson Fachin: “[...] tenha-se presente a tríplice dimensão da Constituição: formal (apreendendo regras e princípios expressos no texto constitucional), substancial (apreendendo a Constituição efetivada pelos pronunciamentos da Corte Constitucional e pela incidência dos princípios implícitos que derivam dos princípios explícitos do texto constitucional) e a prospectiva, a qual se vincula pela ação permanente e contínua, num sistema jurídico aberto, poroso e plural.” FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 7. [19] HESSE, Konrad. Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 19. [20] Referência às três constituições do Direito Civil enunciadas pelo Ministro Edson Fachin em sua última publicação acadêmica antes de assumir a função republicana jurisdicional no Supremo Tribunal Federal. Tais constituições (que não se confundem com o documento jurídico-político que estrutura nossa República) são compreendidas como espacialidades e temporalidades distintas de movimentação constitutiva do Direito Civil, divididas, à exemplo das dimensões do texto constitucional, em constituição formal, constituição substancial e constituição prospectiva. Em suas palavras: “No que diz respeito à tríplice atuação constitutiva, formal é o significante que veicula a expressão de regras positivadas, especialmente (mas não exclusivamente) na Constituição apreendida como Direito Constitucional Positivo, como também na legislação infraconstitucional, incluindo as regras em sentido próprio do Código Civil, submetida à correção hermenêutica da Constituição; não raro, é produto de olhar que se recolhe do pretérito ou se esgota no presente; em si não tem, pois, transcendência em direção ao vindouro. Substancial é a manifestação da força normativa da principiologia constitucional, distante do conceito de princípios gerais do Direito em sentido tradicional, e inserida no conceito de norma. Prospectiva é a dimensão propositiva e transformadora desse modo de constitucionalizar, como um atuar de construção de significados e que pode, dentro do sistema jurídico, ocorrer como realização hermenêutica ou, em alguns cenários de lacunas, como integração diante da situação que se apresente sem texto (constitucional ou infraconstitucional) em sentido formal, pois aqui se trata (i) da força construtiva dos fatos e (ii) da constituição haurida da realidade humana e social.” FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 8-9. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |