“Quem tiver um juiz por acusador, precisa de Deus como defensor” é uma máxima repetida incansavelmente no âmbito das ciências jurídicas, sobretudo na produção científica tupiniquim.
Ora, se vivemos em um Estado Democrático de Direito baseado em uma Constituição Cidadã, idealizada como instrumento de proteção e garantia dos direitos e garantias fundamentais, há ainda que se falar na aglutinação de poderes de acusar e julgar por parte do juiz, característica vital do sistema inquisitório engendrado pela Igreja Católica em sua caça às bruxas durante a Idade Média? Para explorarmos este artigo do nosso Código de Processo Penal e compreendermos seu insulto ao sistema acusatório estabelecido implicitamente em nossa Carta Magna e ao próprios conceitos basilares deste Estado-Nação, como o superprincípio à proteção dos direitos humanos, e, especificamente, em matéria processual, os princípios do contraditório e de paridade de armas, é necessário valer-se da ecologia de saberes[1], brilhantemente proposta pela professora Maria Cândida Moraes, pois, como explicitado por Ferrajoli “o erro está em confundir os planos da existência e da validade”[2], e para a melhor contextualização do Art. 385 enquanto causa nula que aqui propomos, é indispensável o retorno a fatídica década de 40, traçando um paralelo entre o Brasil de Getúlio Vargas e a Itália deBenito Mussolini. Começando por Vargas, discorre Francisco Campos[3], “Ao Estado Novo getulista importava a unificação da legislação processual”, assim como na Itália de Mussolini, que na época vivia sob governo do Partido Nacional Fascista, tendo estreita relação com Adolf Hitler e os nazistas alemães. Quanto a ligação do regime brasileiro e italiano neste mesmo período, observa João Neto Bertonha[4], “A análise da ação fascista dirigida ao Brasil e à América Latina como um todo nos permite perceber, assim, como esta seguiu, com bastante coerência, as alterações no padrão da política externa italiana imprimidas por Mussolini e seu regime no decorrer do ventênio fascista.” A influência italiana no modo de fazer política no Brasil não se restringe apenas ao Código do Processo Penal, cujo qual foi fortemente influenciado pelo Código Rocco[5]. Francisco Campos, autor da obra o “O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico” e Ministro da Justiça de Getúlio Vargas é referência na história do conservadorismo Brasil, sendo um dos nomes mais influentes do regime getulista. Sobre este, expõe Marco Aurélio Nunes da Silveira[6], "Coube a Campos a missão de redigir (quase exclusivamente) a Constituição de 1937, além de articular a criação de um novo Código Penal (que foi promulgado em 1940) e a unificação da legislação processual com o Código de Processo Civil, em 1939, e o Código do Processo Penal, em 1941". Em suma, o CPP de 1941 foi idealizado sob a égide de um regime totalitário. Apesar de importantes modificações[7]que deram um ar de acusatoriedade ao Código, seu princípio unificador[8], abordado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho em uma abordagem kantiana, continua sendo inquisitório, ou neo inquisitório, como suaviza Aury Lopes Jr[9]. Um dos maiores exemplos de tal afirmação ainda em vigor é o Art. 385 do código, que dispõe “Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. (BRASIL, 1941). Ora, se o próprio Ministério Público, órgão essencial da justiça brasileira, Custom legis e titular exclusivo da ação penal pública opina pela absolvição do réu, como pode o juiz, na posição de terceiro imparcial, condená-lo? Se este dispensa as provas produzidas para decidir conforme sua percepção, a marcha processual não passa de mera formalidade. Do outro lado da moeda encontram-se grandes processualistas como Guilherme de Souza Nucci. Estes, em defesa a constitucionalidade do dispositivo, recorrem aos ocos princípios da Íntima Convicção do Juiz, da Indisponibilidade da Ação e do Impulso Oficial, como se fossem claros o suficiente para sustentar tamanho poder, digno do medievalismo europeu, nas mão do magistrado. Neste sentido, discorre Nucci: “E tudo isso a comprovar que o direito de punir do Estado não é regido pela oportunidade, mas pela necessidade de se produzir a acusaçãoe, consequentemente, a condenação, desde que haja provas a sustentá-la.”[10]. Uma vez que se defende a necessidade de se produzir uma acusação, Nucci nos dá uma pista das posições inquisitórias que defende. Quando menciona que a condenação deve se materializar, vista pela ótica do direito de punir do Estado, “desde que haja provas a sustentá-la”, admite o juiz como soberano, ignorando o auto explicativo princípio do procedat iudex ex officio[11]e a própria função institucional do órgão ministerial. Ora, se a próprio Parquet, como pessoa de Direito Público e com a legitimidade para pedir a condenação do réu posiciona-se pela sua absolvição, nos parece óbvio que sua posição deveria vincular a decisão do juiz. Quando não respeita a posição do Ministério Público, o juiz está ignorando as provas presentes nos autos, proferindo uma sentença não congruente com o pedido (sententia debet esse conformis libello). Dissertam Renata Moura Tupinambá e Karine Azevedo Egypto em excelente artigo sobre o tema[12]“O pedido de absolvição equivale à retirada da acusação, uma vez que esta não está sendo sustentada por seu titular privativo”. Se o órgão ministerial não pediu a condenação, restaria ao juiz a decisão de extinguir o processo sem julgamento do mérito, conforme ensina Aury Lopes Jr[13], ou então a sentença versará sobre o que não se pediu (non valetsententia lata de re non petita). Defende Geraldo Prado “Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua credibilidade social, mas intangível pelas partes, na medida em que se apresenta como exercício de sua potestade, máxima representação da sua vontade pessoal, não é legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende às pautas de repressão penal.”[14]. Mas se tão clara é nulidade deste artigo, visto sua senioridade e seu caráter inquisitório, o que explica parte da doutrina e próprios membros do judiciário defenderem sua legitimidade? A resposta desta pergunta só é possível com ajuda das disciplinas propedêuticas do direito, afinal, a literalidade da lei, os manuais e os cursos que encontramos no mercado não são capazes de explicar um posicionamento intimamente ligado na crença do juiz como soberano no processo, justo e correto, tão replicada pela sociedade e, consequentemente, por vezes, dentro do próprio universo jurídico. Antes de mais nada, vale ressaltar que a profissão de magistrado está historicamente ligada às classes dominantes. O último Censo do Poder Judiciário[15], realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que 84,5% dos magistrados consideram-se brancos (enquanto 46% da população é branca); 64% são do sexo masculino (contra 48,5% da população homem). Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, em sua tese de doutorado[16]intitulada “A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil”, denuncia as elites dentro dos tribunais, apontando que, por regra, os magistrados provêm da mesmas classes sociais, famílias e universidades. José Maurício Pinto de Almeida, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná observa “Todavia, tem-se considerado um mito o juiz neutro, na visão de que, como produto cultural de seu meio, suas decisões receberão a influência de sua formação jurídica, de suas crenças religiosas, de sua personalidade e de sua condição econômica.”[17]. Desta forma, se temos juízes com sexo, classe social e etnias comuns influenciados por suas concepções pessoais e munidos do poder outorgado pelo Art. 385 do Código de Processo Penal, estamos diante de um sistema penal parcial e seletivo, pré-determinado a condenar camadas específicas da sociedade[18], justamente o oposto do que se espera dele. Lênio Streck observa “Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos.”[19]. Jessé Souza, sociólogo, escritor e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, em suas obras “A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite” e “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”, denuncia o que chama de pacto antipopular entre as elites e a classe média (a qual pertencem os juízes), com raízes na abolição da escravidão e que perpetuam até hoje a sistemática do poder vigente no país. Em entrevista concedida a Carta Capital, fala: “uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do conhecimento tido comolegítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. Sãojuízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.” Ora, se os juízes fazem parte da dita classe média, e se decidem conforme suas concepções pessoais típicas de uma camada social não predominante, temos como resultado uma sistema de justiça antagonicamente injusto, onde o encarceramento em massa e a parcialidade contra os pobres é tida como comum. A discussão do papel do juiz como soberano no processo é antiga, mas entrou em pauta[20]nos últimos tempos devido a famosa Operação Lava Jato, que teve como protagonista o juiz federal Sérgio Moro e sua equipe. Conduto, o real problema não está nas decisões do juiz popstardaRepública de Curitibaou em qualquer processo dos chamados crimes de colarinho branco, mas sim nas varas criminais da justiça comum Brasil afora, onde juízes são majestade e indiciados a escória, reafirmando o tão criticado sistema inquisitorial. Nos parece estranho o fato da justiça brasileira e seus demais atores (como promotores de justiça e advogados) sejam oriundos, na maioria das vezes, da mesma classe média, e admitam que suas funções sejam relativizadas por juízes que evocam dispositivos como o Art. 385. Seria sustentáculo da chamada juizite[21]abordada por Sérgio Jacomino? Ou ainda, seguindo a linha de Jessé Souza, um pacto entre as elites jurídicas para perpetuar um sistema inquisitório e excludente? Por todos esses aspectos mencionados, resistamos a propagação do perverso sistema penal brasileiro, abordado neste artigo pela ótica do Art. 385 do Código do Processo Penal. No entanto, a inquisitoriedade do código não está restrita a esse dispositivo, mas sim em seu embrião, que é historicamente acobertado pela casta de magistrados e juristas que tratam o direito como um simples papel. A reforma se faz necessária para criarmos um novo modelo de processo, justo, paritário e, sobretudo, verdadeiramente acusatório. João Antonio Tomporoski Acadêmico de Direito pela Universidade do Contestado (UnC) – Campus Canoinhas/SC Lenon Gustavo Batista Taques Acadêmico de Direito pela Universidade do Contestado (UnC) – Campus Canoinhas/SC Wagner Luis Padilha Acadêmico de Direito pela Universidade do Contestado (UnC) – Campus Canoinhas/SC REFERÊNCIAS ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de.A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. BERTONHA, João Fábio. O Brasil, os imigrantes italianos e a política externa fascista, 1922-1943. 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Notários e Registradores: uma visão integrada. agenda, v. 3, p. 0, 2016. Jornal GGN.A sentença do triplex ea polêmica em torno do artigo 385 do CPP. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/a-sentenca-do-triplex-e-a-polemica-em-torno-do-artigo-385-do-cpp. LOPES JÚNIOR. Aury. Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição?2014 LOPES JR, Aury. Direito processual penal. Saraiva Educação SA, 2017. NUCCI, Guilherme de Souza Código de Processo Penal comentado/ Guilherme de Souza Nucci. – 15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 653 PRADO, Geraldo.Sistema acusatório: A conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista crítica de ciências sociais, n. 78, p. 3-46, 2007. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. 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O Brasil, os imigrantes italianos e a política externa fascista, 1922-1943. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 40, n. 2, p. 106-130, 1997. [5]Código Rocco era o código de processo penal italiano de 1930, baseado no direito canônico de origem inquisitorial. [6]SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A cultura inquisitória vigente e a origem autoritária do código de processo penal brasileiro. Revista da EMERJ, v. 18, p. 264-275, 2015. [7]ZAPATER, Maíra. O Código de Processo Penal de 1941: tudo o que você disser poderá ser usado contra você, 2016. Disponível em:<http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/17/o-codigo-de-processo-penal-de-1941-tudo-o-que-voce-disser-podera-ser-usado-contra-voce/ />. [8]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil - Diálogos sobre processos penal entre Brasil e Itália. 2017. p. 50. [9]LOPES JR, Aury. Direito processual penal. Saraiva Educação SA, 2017. [10]Nucci, Guilherme de SouzaCódigo de Processo Penal comentado /Guilherme de Souza Nucci. – 15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 653 [11]Não procederá o juiz de ofício. [12]TUPINAMBÁ, Renata Moura; ROSA, Karine Azevedo Egypto. Processual Penal A invalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal frente à Constituição da República de 1988. [13]LOPES JÚNIOR. Aury. Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição?2014. [14] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: A conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001 [15]Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Censo do Poder Judiciário. 2014. [16]ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de.A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil.2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. [17]Conjur. Ideologia pessoal define decisões de juízes,diz estudo. 2012. [18]Estadão. Maioria dos presos é jovem, negra e de baixa escolaridade. 2017. [19] Conjur. Ideologia pessoal define decisões de juízes,diz estudo. 2012. [20]Jornal GGN. A sentença do triplex e a polêmica em torno do artigo 385 do CPP [21] Juizite:“bordão que pretende exprimir que o cargo ocupou a pessoa, de tal maneira, que tornou-se aquele ser alguém prepotente e arrogante, a mandar sempre”. JACOMINO, Sérgio. Notários e Registradores: uma visão integrada. agenda, v. 3, p. 0, 2016. Comments are closed.
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