Aproxima-se o fim de um ano marcante, no péssimo sentido, para a história democrática do Brasil. Não se pode esquecer que o ano teve início com as notícias que deram conta do massacre que dizimou 56 vidas no Compaj. Não parou por aí. Em quinze dias o sistema carcerário brasileiro registrou mais mortes que o massacre do Carandiru.
Na época dos fatos acima aludidos, escrevi um breve texto (leia aqui) afirmando que o sistema penitenciário NÃO estava em crise, conforme se declarava aos quatro ventos. Muito pelo contrário. Aquelas mortes eram o resultado de um sistemático modo de “gerir os indesejáveis”, como bem pontua Rubens Casara no título de seu novo livro. Estudando com cuidado diversas ocorrências semelhantes, fica claro que o problema nem de perto se adequa a categoria das “crises”, dos “pontos fora da curva”. Com o fim de reafirmar este ponto, segue abaixo um breve relato de um dos casos emblemáticos do problema – o caso Urso Branco, ocorrido em 2001. Como ponto de partida, tomemos a rebelião ocorrida em novembro de 2000 na casa de detenção Doutor José Mário Alves da Silva, conhecida como Urso Branco, situada em Porto Velho, Rondônia. Três detentos são mortos e trinta ficam feridos. É neste momento que a Polícia Militar assume o controle da penitenciária. Em agosto de 2001 uma Comissão de Direitos Humanos, ladeada pelo então governador José Bianco, visita o estabelecimento e promete realizar significativas melhorias em 30 dias. As melhorias não são realizadas e, em setembro de 2001, seis detentos são assassinados como forma de represália. Em dezembro de 2001 ocorre uma nova rebelião, com tentativa de fuga em massa. Agentes penitenciários conseguem separar detentos ameaçados de morte, colocando-os em celas separadas, conhecidas como o “seguro”. Na mesma época, o Juiz da VEP, Arlen Silva de Souza, determina que não poderá haver presos “cela livre”, que costumavam realizar serviços de limpeza e distribuição de refeições. Em 31 de Dezembro de 2001 um grupo da PM chega ao estabelecimento para execução da ordem de recolhimento dos “cela livre”. O grupo decide também retirar os presos considerados comos “matadores” e coloca-los em celas separadas dos demais detentos. Por volta das 21h do dia 1º de janeiro de 2002 inicia-se uma das piores rebeliões da história do país, com a execução de diversos presos do “seguro”, uma vez que membros de grupos rivais haviam sido colocados em celas conjuntas. A Polícia Militar adentra o estabelecimento somente às 15h do dia 02 de janeiro, 18h após o início das execuções. O saldo foi de 45 homicídios a golpes de “chuços”, cabeças decepadas, braços e pernas mutilados. Em 18 de fevereiro são encontrados mais dois corpos em alto grau de decomposição, jogados em um túnel não acabado. A descoberta só foi possível porque familiares deram pela falta dos detentos e notificaram as autoridades. Em 10 de março de 2002 mais dois detentos são assassinados. Seguem-se outras mortes violentas em abril e maio daquele ano. Correndo um pouco com a linha do tempo chega-se a 2004 Os conflitos entre os presos e os agentes do Estado se intensificam. Uma rebelião ocorrida entre os dias 16 e 22 de abril, durante a visita dos familiares dos internos, resultou em 300 pessoas, a maioria mulheres, serem mantidas como reféns pelos presos, além de mais mortes, em troca de exigências como a exoneração da direção geral de Urso Branco e a presença do governador de Rondônia durante as negociações. Em represália, a administração do presídio suspendeu a alimentação e a água dos internos e dos reféns. Os detentos se alimentaram de gatos que viviam no presídio e, por sua vez, responderam com mais mortes e destruição das instalações. Em 2006, mais rebeliões e conflitos entre presos e os agentes do Estado assolaram a unidade prisional. Foram oferecidas as primeiras denúncias de prática de tortura por agentes penitenciários. No dia 1º de outubro de 2006 houve troca de tiros entre presos e agentes penitenciários, o que motivou a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado de Rondônia (SEAPEN) a colocar em prática uma série de medidas conhecidas como “Operação Pente Fino”, na tentativa de conter os atos de insurgência. A operação foi iniciada em 02 de outubro, com uma revista em todos os internos do presídio. Durante tal medida, a SEAPEN constatou a fuga de detentos, fato que não havia sido comunicado pela direção à Secretaria. Por conta do ocorrido, exonerou-se o então diretor do presídio. Durante a referida operação, todos os presos foram despidos e colocados na quadra de futebol do presídio, durante seis dias, onde dormiam e faziam suas necessidades fisiológicas. Alguns sofreram queimaduras na pele por ficaram diretamente expostos ao sol. Brigas e mortes violentasfizeram parte dos “efeitos colaterais da operação”. Foram também aplicadas outras medidas de punição, como espancamentos e reclusão em celas conhecidas como “tampo”, sem janela ou ventilação, assi como suspensão da visita dos familiares. Diante desses acontecimentos, familiares dos detentos se reuniram para denunciar a prática de tortura e pedir providências ao Ministério Público e à OAB/RO, que por sua vez, comunicou à imprensa e aos órgãos governamentais competentes. Representantes da OAB foram impedidos, pela direção do presídio, de buscar informações sobre os atos de tortura denunciados. Para não cansar o leitor, conclui-se aqui o infame histórico da penitenciária Urso Branco, não sem antes registrar que entre 2002 e 2007 cerca de 100 mortes são oficialmente reconhecidas. O caso Urso Branco se tornou mundialmente conhecido em virtude das denúncias à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Problemas sérios foram levantados nas inspeções dirigidas pelos denunciantes, tais como: insalubridade total; superlotação; tortura; insegurança dos agentes, impedindo até mesmo que os representantes da Corte chegassem até o local em que estavam alojados muitos detentos; investigações relacionadas aos homicídios ocorridos no interior da penitenciária pela própria PM, em desconformidade com normas internacionais; presídio controlado por facções; extrema lentidão no processo de reforma das instalações destruídas nas rebeliões; baixo número de agentes por preso; falta de inspeção nas celas; falta de detector de metais; uso da PM para garantir o sossego). Em relação a todas estas denúncias, a Corte elaborou uma série de requerimentos, exigindo, com urgência, entre outros pontos[1]: - medidas mínimas de segurança para os reclusos, agentes, policiais e visitantes; - atendimento à condições internacionalmente estabelecidas de salubridade e espaço mínimo, amplamente violadas na penitenciária; - organização de uma lista completa dos reclusos, incluindo número e nome completo; - separação dos presos provisórios dos já condenados; - lista indicando os presos colocados em liberdade; - apuração célere da responsabilidade por atos de tortura e homicídios cometidos nas rebeliões relatadas. Da análise dos dez relatórios enviados pelo Brasil em reposta à Corte, relacionam-se abaixo as medidas alegadamente tomadas: - melhora do setor odontológico; - inscrição dos agentes em cursos de aprimoramento; - aumento paulatino do número de agentes, ainda longe, no momento do último relatório, do recomendável em relação ao número de detentos; - reforma parcial das instalações; - mutirões da Justiça Itinerante; - alegação de que a penitenciária servirá apenas para presos condenados – nunca foi cumprida; - realização de um culto ecumênico e uma “festinha”. A Comissão Especial, designada para análise das denúncias e dos requerimentos, se reuniu apenas três vezes no período de troca dos relatórios. No final de todas idas e vindas dos relatórios, a Corte parece ter se cansado da atitude lacônica das autoridades brasileiras. Estranhamente, o processo foi arquivado. As últimas manifestações da Corte datam de 2005. Estão todos convidados a conhecer a situação das penitenciárias de Rondônia e, no final de contas, de todo o Brasil, para averiguar pessoalmente se alguma coisa mudou. Em 2005 a população carcerária não chegava a 300.000. Em 2012 já superava os 500.000. Hoje aproxima-se rapidamente de superar a casa de 1.000.000 de detentos. Não cabe neste espaço a análise das diversas causas deste cenário. Estudar criminologia é o primeiro passo para uma compreensão fidedigna do fenômeno aqui apontado. O que é certo é que qualquer ciclo de violência possui capacidade exponencial. De acordo com os influxos operam-se os resultados, que viram novamente influxos. Para estudar de que modo chegamos ao ponto em que cientenas de vidas não valem quase nada, vale a pena conhecer os apontamentos de pensadores como Agamben, quando trata da categoria do homo saucer[2], aquele cuja vida pode ser retirada sem consequências, aquele que é tido como sem valor, como inútil. Na clara definição de Bauman, “homo saucer é a principal categoria de refugo humano”[3]. A questão mais interessante talvez seja: em que ponto da história humana começamos a enxergar outros não apenas com base no velho maniqueísmo que dá vida a dicotomia amigo/inimigo, mas a realmente interpretar o coletivo com base na lógica produto/lixo? Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado Referências: [1] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_05_portugues.pdf. Acesso em 15/09/2017. [2] BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: zahar, 2005. p. 46 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: zahar, 2005. MELLO, Larissa Brochado. Caso urso branco: a responsabilização do estado brasileiro por violações de direitos humanos em unidades prisionais perante as medidas de urgência do sistema interamericano. Monografia apresentada à UniCEB. Disponível em: http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/7035/1/21031808.pdf. Acesso em 10/10/2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |