Pode um deficiente visual funcionar na qualidade de jurado no Tribunal do Júri? Antes que o leitor responda de forma positiva ou negativa, pensemos na dinâmica da sessão do júri e quais os requisitos exigidos para que um jurado assim o seja. O Código de Processo Penal estipula a função do jurado, seus requisitos e como sua atuação junto ao plenário deve se dar. Em seu artigo 436, o CPP prevê que “o alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade”. São tais, em suma, os requisitos exigidos: maioridade e “notória idoneidade”. Pulemos o debate que poderia surgir em torno da questão de “notória idoneidade”, pois a pretensão da presente abordagem é mais específica. No § 1º do artigo 436 do Código de Processo Penal encontra-se uma regra óbvia, mas que é sempre bom frisar: “Nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução”. Neste ponto cabe a pergunta: a recusa de um cego no conselho de sentença do Tribunal do Júri, por ser cego, pode ser interpretada como aquela discriminação vedada pelo código? Temos um grande exemplo dessa celeuma ilustrado na literatura de John Grisham. Em “O Júri”, livro que foi adaptado para o cinema com o mesmo nome, há uma grande preocupação para com a formação do conselho de sentença que será instituído com o fim de julgar uma grande e polêmica causa – uma demanda pleiteando indenização contra a indústria do tabaco. A expectativa é grande, vez que ambos os lados da disputa judicial investiram pesado em todas as táticas processuais. Saber quem vai decidir a questão pode dar uma pista sobre como a coisa poderá ser resolvida. Daí que a preocupação se faz presente quando do sorteio dos jurados. No romance em questão, convocados os jurados a serem sorteados, o juiz inicia sua fala fazendo um rápido resumo do caso. Passa então, com base numa legislação especial, a informar que alguns dos possíveis jurados estariam isentos daquele dever. Alguns são liberados. Na sequência, o juiz indaga se haveria ali algum cego “legalmente cego”. O Sr. Herman Grimes, jurado número sessenta e três, levanta a mão. O juiz pede que Herman se levante, sendo prontamente atendido. Herman é questionado se de fato era cego, respondendo afirmativamente. Eis que o juiz assim aduz: “Muito bem, sr. Grimes, de acordo com a nossa lei, está dispensado do dever de jurado. Pode ir”. A dispensa poderia ser vista(e é) como um alivio para alguns. Mas Herman não aceita a isenção que lhe é imposta. “Por quê?”, “Por que tenho de ir embora”, questiona. “As pessoas cegas não podem servir como jurados”, responde o juiz. “Quem disse que os cegos não podem servir como jurados?”, arremata Herman. Pronto. O mal-estar já se instalara. O juiz procura manter uma atitude bem-humorada enquanto Herman vai ficando cada vez mais hostil. Herman diz que se existir uma lei prevendo que cegos não podem ser jurados, a lei seria discriminatória e ele moveria um processo por isso. Já se o ato da dispensa de um jurado cego, por ser cego, fosse mera liberalidade de praxe do juízo, a coisa seria pior, e o processo pela discriminação seria movido ainda mais rápido. O juiz, visando resolver aquela situação da melhor forma possível, consulta a legislação mencionada como mais acurácia. Conforme narra o livro, “a lei dizia que uma pessoa cega podia ser dispensada do júri, e quando o juiz viu a palavra podia, resolveu rapidamente acalmar o sr. Grimes e tratar do seu caso mais tarde”, de modo que o juiz assim diz: “Pensando melhor, senhor Grimes, acho que o senhor seria um jurado excelente”, ao que Herman sorri a agradece, vez que não mais dispensado. E como funcionaria uma sessão do Tribunal do Júri com um jurado cego? Ser cego é fator impeditivo para funcionar como jurado? Vale lembrar que no romance de Grisham o jurado não apenas permaneceu no ato como também exerceu a função de jurado naquele caso. A Agência de Notícias do CNJ publicou nesse ano um pequeno artigo explanativo sobre como funciona o Tribunal do Júri. Na matéria, o CNJ coloca como impedimento para ser jurado o fato de o cidadão ser cego. Para Luiz Flávio Gomes, seguindo esse entendimento, o que motiva o impedimento do cego para funcionar como jurado é o fato de que este é “impedido de examinar provas que por vezes são apresentadas em plenário (fotografias, perícias etc.), embora com a capacidade plenamente preservada, também não está habilitado a servir como jurado”. Em sentido diverso, Paulo Rangel defende a participação do cego no Tribunal do Júri na qualidade de jurado. Para o jurista, o fato de ter a percepção visual prejudicada pela sua condição não obsta o cego de “se manifestar diante de tudo o que foi dito e lido em plenário”, além de não haver “nenhum óbice legal em sua aceitação”. As cédulas de votação “devem ser e braile e escritas a fim de que não se quebre o famigerado sigilo do voto”. Somente assim, com tal inclusão, seria “a formação do Conselho de sentença com todos os segmentos sociais a fim de obter, ao máximo possível, uma decisão que espelhe o sentimento da comunidade local, sem preconceitos”. A dinâmica do Tribunal do Júri é singular. O preparo das partes, o estudo, o ânimo, a combatividade, enfim, os diversos fatores quem permeiam o júri são únicos, tanto enquanto instituto como enquanto cada caso sendo um caso. Mas um jurado cego é de uma especificidade tremenda. Pode ou não pode? Se pode, os tribunais estarão equipados para atender as particularidades necessárias para o ato? Se não pode, o impedimento consistiria em discriminação ou uma impossibilidade justificada? Deixo a(s) resposta(s) com os leitores. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA GRISHAM, John. O Júri.Rio de Janeiro: Rocco,1998 RANGEL, Paulo.Tribunal do Júri: visão linguística, histórica, social e jurídica.4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 86-89 http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81520-cnj-servico-entenda-como-funciona-o-tribunal-do-juri Comments are closed.
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