Aos que se surpreenderam com o artigo escrito para a presente coluna acerca do caso do perigoso traficante de 1 grama de maconha[1], não podem deixar de conferir o presente escrito, pois no âmbito da justiça militar, isso poderá ocorrer e com frequência.
Muito se discute acerca do delito de uso ou tráfico de entorpecente nos termos da lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Vários questionamentos são realizados, seja na difícil distinção entre usuário e traficante, face a ausência de um critério objetivo para realizar tal diferenciação, seja até mesmo a (não) incriminação do usuário de entorpecentes, dentre outros temas. Antes de iniciar a análise sobre o tratamento do usuário e do traficante de substâncias entorpecentes pela Legislação Castrense, é necessário retomar alguns fundamentos básicos acerca do tratamento concedido ao usuário e do tratamento concedido ao traficante em termo de Política de Drogas. A legislação repressiva em torno das drogas passou por inúmeras alterações, desde a equiparação do usuário e traficante[2] a exemplo do artigo 1º do Decreto Lei nº 385/1968[3] que alterou o artigo 281 do Código Penal vigente há época, até a primeira tentativa de uma diferenciação entre usuário e traficante que ocorreu por intermédio da Lei nº 5.726/71, que por mais que o discurso fosse a diferenciação entre usuário e traficante, ainda as penas se assemelhavam. Já em 1976, surge a Lei 6.368/76, que diferenciava o usuário do traficante, estabelecendo dispositivos próprios para cada qual, bem como penas distintas, através do artigo 12 (para traficante) e artigo 16 (para usuário), mas ainda estabelecendo penas de detenção ao usuário. Com a edição da Lei 11.343/06, houve a despenalização do usuário através da edição do artigo 28[4], estabelecendo outras sanções para quem fosse detido com entorpecentes para uso pessoal. Tais alterações legislativas derivam do discurso médico-jurídico em torno do usuário, sendo que o uso de substâncias entorpecentes é considerado como uma doença aos olhos da lei, e, consequentemente, o usuário necessita de tratamento e não de cárcere, como explicita OLMO:
Assim, perceba que a não penalização com o cárcere ao usuário de entorpecente deriva do conceito de que o usuário não necessita de cárcere, ou seja, uma mudança no pensamento no que concerne o sistema de Política de Drogas adotada. Noutro lado, quando em um lugar sujeito a administração militar, a conversa é outra, o militar não goza dos mesmos “benefícios” trazidos pela lei 11.343/06, senão vejamos. O Código Penal Militar foi editado no ano de 1969, através do Decreto-Lei nº 1.001/69, sendo que o dispositivo acerca dos entorpecentes não foi alterado desde então. Desta feita, tanto o uso quanto o tráfico de entorpecentes, realizado em lugar sujeito à administração militar, possui previsão legal específica no capítulo III, mais precisamente no artigo 290 do Código Penal Militar, que possui a seguinte redação: CAPÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, até cinco anos. Casos assimilados § 1º Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar: I - o militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar; II - o militar que, em serviço ou em missão de natureza militar, no país ou no estrangeiro, pratica qualquer dos fatos especificados no artigo; III - quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício. Talvez um dos maiores problemas, carregado de notas de inconstitucionalidade, se reveste no fato de igualar o traficante ao usuário de drogas, aplicando, inclusive, pena de reclusão de 01 à 05 anos (Cf. artigo 290 c/c 58 do CPM). Ou seja, analisando o dispositivo do Código Penal Castrense, verifica-se que em matéria de entorpecentes, há época de sua edição e promulgação, se apoiou no Decreto-Lei 385/68, vez que estabelece, inclusive, as mesmas penas do tráfico e uso de drogas que eram estabelecidas na época (01 à 05 anos), bem como coloca o usuário em equiparação ao traficante. Assim, ao analisar o Código Penal Militar, nota-se que este restou parado no tempo em matéria de entorpecentes, permanecendo a criminalização do usuário de entorpecentes, parando, inclusive, na pena de reclusão para àqueles envolvidos com drogas, sejam traficantes, sejam usuários. Note que o usuário, aos olhos da Política de Drogas atual, bem como da Lei 11.343/06, é considerado como doente, e, portanto, não merece o cárcere, mas sim tratamento, fato o é, que o artigo 28 da referida lei estabelece as seguintes sanções para o usuário de entorpecentes: “I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.” Poderíamos aqui, encontrar uma solução através da técnica Penal e Processual Penal do conflito de normas, sendo que a legislação posterior que versa sobre o tema específico de entorpecentes (Lei nº 11.343/06) versa sobre o mesmo delito previsto no artigo 290 do CPM, porém de modo mais benéfico ao usuário, e, então, utilizaríamos o princípio in favor rei, aplicando as penas do artigo 28 da lei de drogas. Contudo, como na seara penal nem tudo são flores, eis que há um impedimento, a edição da súmula nº 14 do Superior Tribunal Militar, que assim define:
Assim, mesmo com o atraso legislativo de quase cinquenta anos, a Legislação Penal Militar ainda prevalece sob a legislação mais atual sobre entorpecentes, que ainda não está livre de críticas, porém despenaliza o usuário de entorpecentes (que diga-se de passagem, quiçá deveria ser punido).[6] Outro ponto a ser colocado em debate, revela-se no fato de que o usuário de drogas jamais poderá ser preso em flagrante, sendo que, quando flagrado na posse de substâncias entorpecentes para uso pessoal, deverá ser lavrado o termo circunstanciado, e após assinar o termo de compromisso de comparecimento em juízo, deverá ser imediatamente liberado, direito este não resguardado para aquele que incidir nas disposições do artigo 290 do Código Penal Militar. Noutro lado, (não que o presente escritor seja a favor, mas aos mais sedentos por punição), percebam que o artigo 290 do Código Penal Militar, estabelece pena de 01 à 05 anos de reclusão ao traficante, enquanto o artigo 33 da lei 11.343/06 estabelece a pena MÍNIMA de 05 anos de reclusão, ou seja, “compensaria” mais ser traficante sob a administração militar do que fora dela. Com toda vênia a argumentação contrária, após a edição da lei 11.343/06, despenalizando o usuário de entorpecentes, o artigo 290 do Código Penal Militar passou a ser inconstitucional, uma vez que é impossível tratar de modo igualitário os usuários de entorpecentes, pois estes deveriam gozar dos mesmos benefícios concedidos por àqueles que não estão submissos ao Código Penal Militar, ou seja, em total desacordo com a disposição do Artigo 5º, caput, da Constituição da República.[7] Há que se destacar, inclusive, que após o advento da Constituição da República de 1988, a única alteração substancial na lei de drogas realizada, foi promovida pela lei 11.343/06, que como citado exaustivamente, despenalizou o usuário de entorpecentes, levando ao raciocínio de que o Código Penal Militar, editado em 1969, mais especificadamente o seu artigo 290, não foi recepcionado pela Constituição, levantando a possibilidade de sua inconstitucionalidade. No mesmo sentido, há que se salientar que não há motivos idôneos para realizar tal distinção entre os usuários, seja na jurisdição comum, seja na militar, pois ambas as legislações justificam a criminalização em torno dos entorpecentes sob o argumento de que se trata de um crime contra a saúde pública, bem como os motivos para despenalização do usuário não deixam de existir simplesmente pela jurisdição a ser aplicada, uma vez que, sendo considerado usuário, aos olhos da Política de Drogas vigente, este será considerado doente, necessitando de tratamento e não de cárcere, estando ou não submisso ao Código Penal Militar. Urge a necessidade de se reavaliar a Política de Drogas adotada pelo Código Penal Militar, uma vez que vai de encontro com a própria Política de Drogas adotada pelo Estado, a qual diferencia o usuário do traficante, pois, ao igualar os dois, o que faremos o princípio da proporcionalidade? Com efeito, um fato é notório, se a Lei 11.343/06 já pode ser considerada por muitos especialistas um atraso em termos de Política de Drogas, em especial quanto ao tratamento conferido ao usuário, vez que ainda o criminaliza, coloca-se sob a mesa o retrocesso do artigo 290 do Código Penal Militar, que está há quase 50 anos desatualizado. Ao que aparenta, o Código Penal Militar está mais para o Clube da Luta, no qual os participantes obedecem a primeira e segunda regra: não falam sobre o clube da luta[8], bem como estabelecem regras totalmente distintas, com penas distintas, em próprio prejuízo dos participantes do Clube, pois quando estão dentro do galpão (Código Penal Militar), as regras do mundo ficam da porta para fora. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Pós-graduado em Direito Contemporâneo - Com Ênfase em Direito Público - Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (AbdConst). Mestrando em Direito na Uninter. [1] LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O Caso do Perigoso Traficante de 1 Grama de Maconha. Pub. 30/01/2018. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-caso-do-perigoso-traficante-de-1-grama-de-maconha>. [2] Neste sentido BARRETO: [...] o legislador brasileiro optou pela medida drástica de identificar, na mesma categoria, todos os envolvidos com tóxicos, independentemente de sua participação. BARRETO, Menna. Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos. Freitas Bastos, 1988, p. 29. [3] Art. 1º O artigo 281 do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), modificado pela Lei nº 4.451, de 4 de novembro de 1964, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou de desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: (Comércio, posse ou facilitação destinadas à entorpecentes ou substância que determine dependência física ou psíquica.) Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de 10 a 50 vêzes o maior salário-mínimo vigente no país. § 1º Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: I - importa ou exporta, vende ou expõe à venda, fornece, ainda que a título gratuito, transporta, traz consigo ou tem em depósito ou sob sua guarda matérias-primas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substância que determinem dependência física ou psíquica; Il - faz ou mantém o cultivo de plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica. III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. (Matérias-primas ou plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determine dependência física ou psíquica.) [4] Neste sentido, CARVALHO explica: “No caso da Lei 11.343/06, importante ressaltar que não ocorreu processo de descriminalização do porte para consumo pessoal de drogas.” CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. 6 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p 197. [5] OLMO, Rosa del. Las Drogas Y Sus Discursos, p. 117/136. in: PIERANGELI, José Henrique Pierangeli Coord. Direito Criminal. Col. Jus Aeternum, Vol. V. Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 125 [6] Conforme KARAM: [...] é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substancia, que causa ou pode causa mal à saúde, não há como identificar a ofensa a saúde publica, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo (...) Nesta linha de raciocínio, não há como negar a incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde publica, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para difundir entre terceiro, sendo totalmente fora de logica sustentar que a proteção à saúde publica envolve a punição da posse de drogas para o uso pessoal. CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. 6 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 406 apud Maria Lucia Karam. [7] BRASIL. Constituição da República. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [8] TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. O clube da luta pelo direito! Pub. em 04/10/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-clube-da-luta-pelo-direito>. REFERÊNCIAS BARRETO, Menna. Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos. Freitas Bastos, 1988, p. 29. CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. 6 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 406. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O Caso do Perigoso Traficante de 1 Grama de Maconha. Pub. 30/01/2018. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-caso-do-perigoso-traficante-de-1-grama-de-maconha>. OLMO, Rosa del. Las Drogas Y Sus Discursos, p. 117/136. in: PIERANGELI, José Henrique Pierangeli Coord. Direito Criminal. Col. Jus Aeternum, Vol. V. Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 125 TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. O clube da luta pelo direito! Pub. em 04/10/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-clube-da-luta-pelo-direito>. Comments are closed.
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