Inicio o texto com uma confissão: estou quebrando as principais regras do clube da luta ao escrever o presente artigo. É que para que seja possível a análise da obra literária em questão pelo viés do direito, não posso fugir do fato de que violarei algumas normas. Digo das normas do próprio clube da luta. Adianto aqui as duas primeiras regras (violo ambas): a primeira é que você não fala sobre o clube da luta, enquanto a segunda é que você não fala sobre o clube da luta. Confissão feita (ansiando para que tal seja levada em conta quando da aplicação da minha pena, conforme prevê o artigo 65, III, “d” do Código Penal), prossigo. A obra sobre a qual me debruço numa tentativa de extrair algum sentido que possa ser observado pela ótica do direito é aquela mais famosa do autor Chuck Palahniuk: Clube da Luta. O livro possui um enredo aparentemente nonsense (mas a crítica pretendida ali reside), com muito sangue, violência, irresignação, niilismo e um final revelador. A obra recebeu uma notável adaptação para o cinema, alcançando grande sucesso posteriormente (creio que mais pelas cenas de luta no filme, mas isso é mera opinião pessoal minha). O enredo apresenta a vida monótona de um empregado de uma companhia de seguros, o qual passa a frequentar grupos de apoio como forma de distração para a sua vida pouco prazerosa. O protagonista conhece Tyler Durden numa viagem, quando após um encontro num bar os dois lutam do lado de fora. Tal briga foi proposital, significando para ambos uma forma de espantar seus demônios, de se libertar daquilo que corrói suas entranhas, de gritar contra as conformidades. Da amizade e da boa sensação que a briga proporcionou para a formação do clube da luta foi um passo. E então o clube da luta é criado, passando a ser um dos escopos da trama. O clube da luta contém regras. O clube da luta é um clube onde pessoas se reúnem para lutar – o nome do clube traduz exatamente aquilo que é. A primeira regra, como já adiantado,é que você não fala sobre o clube da luta. A segunda regra é que você não fala sobre o clube da luta. A partir da terceira regra têm-se normas que devem ser observadas pelos lutadores. Não é pelo fato de o clube ser secreto, funcionando sob a penumbra, que se trata de um vale tudo entregue à barbárie. As pessoas se reúnem num círculo, a famosa “rodinha”, e entram no centro dois lutadores. A violência tida como libertadora nesse contexto se inicia. Os torcedores (próximos lutadores ou meros expectadores do espetáculo) ovacionam em volta daqueles que brigam no meio. Quanto às demais regras que regulam o combate,estas buscam justamente evitar que as lutas vão para além dos verdadeiros motivos destas acontecerem. Têm-se assim regramentos sobe como deve se dar a luta (apenas uma luta por vez e com dois lutadores por luta, estes devendo estar sem camisa e sem sapatos) e a reiteração da finalidade do clube, deixando-se claro que o clube só existe enquanto ele estiver acontecendo. O livro avança bastante, não se resumindo à exposição de brigas dentro de um clube secreto. Daí que registro a indicação para quem ainda não leu, principalmente para se situar nas questões que não abordadas neste pequeno texto. Façamos aqui então a abordagem proposta na coluna “Direito Penal & Literatura”. Imaginemos que estivesse ocorrendo uma reunião do clube num galpão abandonado próxima de casas habitadas. Incomodados com os gritos na madrugada, os vizinhos chamam a polícia para verificar o que está acontecendo. Os policiais comparecem ao local e adentram ao galpão abandonado, flagrando o cenário de violência consentida que ali está ocorrendo. O que fazer? Qual seria o modo de proceder de todos os presentes? Os lutadores fugiriam? Os policiais realizariam a abordagem nos presentes ou prenderiam alguns? Afinal, qual seria o crime ou os crimes que poderiam ser caracterizados? Inicialmente há de se verificar a procedência do galpão abandonado em tal cenário hipotético. Seria um galpão abandonado por assim ser de fato ou por estar transitoriamente inabitado? Estaria de fato inabitado? Indago assim diante da possibilidade da caracterização do crime de violação de domicílio (artigo 150 do Código Penal). Indo além, vejo que a questão principal seria a luta em si. Tratar-se-ia de um esporte não regulamentado, já que conduzido por regras de rua (as do próprio clube). Como seria observada a violência ali praticada pela ótica do direito penal? Vale lembrar que as lutas ocorrem com o consentimento de todos os envolvidos. Ainda, que há regras que impedem que as agressões se transformem em algo mais significativo que lesões. Há crime? Quanto às lesões, acabariam entrando naquela discussão já de praxe de quando eventualmente há dúvidas sobre a norma aplicada a tal situação, a saber, se trataria de injúria real (artigo 140, § 2º do código penal), lesão corporal (artigo 129 do Código Penal) ou vias de fato (artigo 21 da Lei das Contravenções Penais)? Particularmente, vejo que nenhum desses. Ora, para se falar em injúria real, deve se fazer presente a intenção de ofender a dignidade ou o decoro daquele que sofre a agressão. No clube da luta não existe tal intenção, já que a luta ocorre pela própria luta, como um meio de extravasar e se libertar das amarras que na “realidade” não se foge. Desta forma, não restaria caracterizado tal crime. A lesão corporal dependeria da representação do ofendido, cujo intento certamente inexistiria em qualquer dos participantes. A exceção se daria quando as lesões ocorridas ultrapassassem aquilo que se entende por “lesões leves”, vez que se tratando de resultados mais significativos, poderia ali se caracterizar o crime de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, ou seja, crimes cuja ação penal pública é incondicionada. O Estado poderia (e deveria [?]) agir. Ainda assim a situação toda deveria ser analisada no contexto que ali se faria presente, levando em consideração, por exemplo, o consentimento do ofendido como possível causa excludente de ilicitude a depender do caso. Já quanto à contravenção penal de vias de fato, dada a abertura genérica constante no dispositivo que prevê a infração (“praticar vias de fato contra alguém”), seria possível “enquadrar” todos os presentes na pratica de tal conduta? Eu acharia forçoso, tanto pelos entendimentos existentes sobre como se dá a ação penal de tal contravenção (há quem entenda que se trata de ação penal pública condicionada à representação, justamente por ser análoga à lesão corporal), como pelo viés crítico contra a lei das contravenções penais, no qual me situo. “Então deveriam ficar todos impunes?”, podem alguns questionar. Depende do que se entende por impunidade e aquilo que se visa evitar que ocorra. Quais são as consequências da existência do clube da luta (no livro vemos que estas vão além da violência entre os próprios participantes do clube)? Vejo que o braço do direito penal deve ser mínimo, quase um maneta. Pela seara do direito penal, um “enquadramento” contra os participantes do clube da luta deveria ser muito refletido caso se fizesse de fato necessário. Para outras áreas do direito que visassem coibir o clube de Tyler Durden, quiçá pudessem ser mais produtivas em seu intento.As especificidades do clube da luta de Chuck Palahniuk observam regras criteriosas, por mais que mínimas, possuindo toda uma razão própria para a existência do clube. E antes que ocorra alguma crítica contra o texto no sentido de taxa-lo de algo como “incentivo para a violência gratuita”, pontuo que não se trata disso. Muito longe disso. Leia e releia o texto caso tenha concluído a leitura de tal modo. Trata-se de uma mera abordagem hipotética do tratamento pelo direito pátrio sobre uma obra ficcional. Mas se ainda não compreender, leia ou releia a obra de Chuck Palahniuk. Verás que o significado e a mensagem presentes na obra estão para muito além da diversão literária com o tema da violência. Sendo criminoso ou não, o clube da luta da obra de Chuck Palahniuk espera sempre pelo leitor, a fim de que possa ser lido e compreendido, possibilitando que suas várias nuances possam ser interpretadas, comentadas e debatidas. Há sempre vários e novos significados na literatura ansiando para que sejam desvelados. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura BIBLIOGRAFIA CONSULTADA PALAHNIUK, Chuck. Clube da Luta.São Paulo: Leya, 2012. Comments are closed.
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