Já pararam para pensar nos efeitos e nas consequências que teríamos num cenário hipotético onde inexistisse a figura da prescrição? Aliás, já pararam para pensar qual a finalidade do instituto da prescrição no cenário jurídico? “Impunidade” - bradariam erroneamente alguns. A questão, entretanto, é um pouco mais pontual do que uma resposta irrefletida do senso comum. Antes de adentrar no aspecto jurídico da prescrição, tomemos um exemplo ilustrativo do cenário mencionado acima. Retomo assim mais uma vez “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. O protagonista da grandiosa obra, Jean Valjean, se vê perseguido de maneira implacável pelo Estado, personificado na história como o inspetor Javert. Já abordei essa perseguição como um estigma nesta coluna[1]. No entanto, na presente, me debruço justamente sobre a motivação jurídica que deu guarida a Javert, possibilitando-o perseguir Jean Valjean incansavelmente. Jean Valjean cumpriu dezenove anos de prisão por ter roubado um pão. No entanto, não foi por tal crime que continuou sendo perseguido pelo Estado. Vale lembrar que o tempo que cumpriu preso foi justamente a pena que lhe foi imposta (a pena original mais alguns acréscimos), ou seja, quando saiu, estava quite com a sociedade. Na prática sabemos que não foi bem assim, já que Jean Valjean não foi aceito em lugar algum dada a sua condição de egresso. Por mais que tentasse, bastava alguém saber que fora preso para que o desprezo surgisse como consequência. Após ser acolhido pelo bispo Myriel, Jean Valjean furta alguns pertences de seu anfitrião. É capturado na fuga, mas quando apresentado pelos agentes estatais ao bispo, Myriel mente dizendo que havia o presenteado com os objetos. Jean Valjean foi liberado, de modo que não foi por tal furto que o Estado continuou a persegui-lo. Claro que tal ocorrido serviu para marcar ainda mais a figura de Jean Valejan, mas tendo o bispo relatado que não houve furto, também não havia que se falar em crime. Finalmente, após sair da casa do bispo, Jean topa com um garoto que deixa cair uma moeda no chão. Jean pisa em cima da moeda e impede que o garoto a recolha. O menino sai em prantos e Jean fica ali, sozinho, refletindo sobre tal ação, quando então surge sua epifania que faz com que se arrependa e mude completamente de vida. O “furto” da moeda: eis o último crime de Jean Valjean pelo qual passou a ser perseguido incansavelmente pelo Estado. O “crime” em questão jamais prescreveu. Vários anos se passaram e, ainda assim, Jean Valjean se via obrigado a viver nas sombras, seja adotando identidades diversas, seja forjando a própria morte. Independente da situação, do tempo passado, das circunstâncias diversas de outrora ou de qualquer outro fator, o implacável Javert estava sempre no encalço de Jean Valjean. O crime de furtar moeda era imprescritível. Retomemos as indagações constantes no início do texto. O que e para que é a prescrição? Guilherme de Souza Nucci descreve e explica o instituto de tal modo:
Para René Ariel Dotti, ao tecer noções gerais acerca da prescrição:
Assim, podemos dizer que o tempo apaga certas coisas. Não no sentido das lembranças, do fenômeno do ocorrido ou do ignorar eventos passados, mas sim no aspecto jurídico. Assim é e deve ser. Os motivos, como acima pontuado, são diversos. Para aqueles que se pegarem refletindo sobre o assunto e eventualmente questionando o instituto, basta que se lembrem do caso de Jean Valjean e das mazelas decorrentes da imprescritibilidade de um crime. Que sirva como um exemplo ilustrativo na literatura sobre uma das razões da prescrição. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura BIBLIOGRAFIA CONSULTADA DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral.5ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013 HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2014. NUCCI, Guilherme de Souza. Dicionário Jurídico: penal, processo penal e execução penal.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. [1]http://www.salacriminal.com/home/o-estigma-do-condenado-em-os-miseraveis Comments are closed.
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