A sociedade atual já foi analisada e descrita de diversas formas. Podemos dizer, por exemplo, que nos situamos na pós-modernidade, ou ainda numa modernidade líquida. Independe da forma ou da nomenclatura utilizada para se ler a sociedade atual, o fato é que todas as análises do tipo acabam concordando pelo menos num ponto: não há uma base concreta na qual nos pautamos para definirmos nossas diretrizes, nossa postura e a condução de nossas vidas enquanto numa comunidade. Por mais que tenhamos diversas construções que buscam fornecer um suporte mínimo para que a sociedade se paute rumando numa direção que se entenda como um avanço, a ausência de um liame em tal sentido, ou ainda a falta de uma noção necessária de que há de se pisar num chão sólido a fim de que se possa caminhar, faz com que essas propostas elaboradas simplesmente deixem de ser observadas. O resultado pode ser observado por aí. Cada um age segundo suas próprias convicções, muitas vezes irrefletidas, sem levar em conta o todo. O efêmero dita as regras. O residual é o que importa. O frágil é o que é levado em conta. Diante desse tipo de perspectiva, vislumbramos também que muitas coisas acabam ficando no terreno do desconhecido. Considerando que a reflexão exige tempo, parcimônia, dedicação e revisão dos próprios conceitos, acaba sendo muito mais fácil pular essa etapa, optando-se pelo irrefletido. Assim, muito daquilo que somente poderia ser alcançado, compreendido ou respeitado pelo exercício do pensar, acaba não o sendo por ser essa a escolha mais fácil. Desta forma, o campo do desconhecido, que já é habitado por diversas questões que infelizmente jamais serão alcançadas, acaba recebendo outras que muitas vezes são superficiais. O lugar dessas não seria o das sombras, pois deveriam estar na luz. Mas dada a ausência de uma base concreta que sustente a necessidade de reflexão, de um estudo profundo, de um exercício do pensar, jogam-se coisas e mais coisas no terreno do desconhecido. Ficam ali, num campo inalcançável. No campo do Direito tem-se muito disso. E a celeuma já tem início logo na formação jurídica de base, como sempre muito bem pontuam grandes vozes do Direito como Lenio Streck, André Karam Trindade e Alexandre Morais da Rosa – para citar apenas alguns. A escolha das obras técnicas para estudo tem como fator determinante o “mais fácil”. Preferem-se os “ensinamentos” que são feitos de maneira simplória, extremamente facilitada, resumidíssima. Assim, o estudo profundo necessário de diversas questões do Direito acabam sendo empurradas para o terreno do desconhecido. Para quê estudar as bases paradigmáticas de determinadas teorias do direito se isso não cai em concurso? Atualmente, muitos dos juristas em formação se preocupam apenas com as arestas, ignorando deliberadamente a profundidade que as temáticas abordadas possuem. E assim o estudo sério vai sendo empurrado para o campo do desconhecido. Lembro aqui de um livro que me surpreendeu bastante pela sua narrativa. Falo do excelente “Caixa de Pássaros”, do autor Josh Malerman. Trata-se de um thriller que prende a atenção do leitor do início ao fim. Ambientado num cenário pós-apocalíptico, o livro tem uma aura presente de suspense e de terror. A obra traz a história de uma mãe que se vê forçada a avançar um rio num barco a remo, contando apenas com o auxílio (para além do cuidado necessário) de seus dois filhos de tenra idade. Os olhos de todos estão vendados, já que as presumidas criaturas que assolaram o planeta conseguem contaminar somente aqueles que ousam desfrutar da visão. A viagem realizada pela protagonista é necessária, já que se trata de sua última esperança pela sobrevivência. Enquanto segue o trajeto, onde vários terrores assombram em volta do barco, a mãe relembra tudo o que aconteceu antes de chegar naquele estado: o início do caos, o grupo de sobreviventes do qual fez parte, os diversos episódios em que lutou para sobreviver, os relatos que ouviu sobre o que aconteceu com o mundo... Aparentemente, o mundo foi tomado por algum tipo de espécie de criaturas estranhas, as quais, ao entrarem em contato visual com as pessoas, fazem enlouquecer qualquer ser vivo, tornando o contaminado violento e suicida. A única forma de tentar sobreviver é não enxergar, não ver, não olhar. Para tanto, o único lugar seguro é o interior das casas, desde que estejam com portas trancadas e janelas cobertas, enclausurando-se totalmente do mundo externo. Nas ocasiões em que se faz necessário andar pelas ruas, vendar-se é essencial, impossibilitando-se de enxergar qualquer coisa. Viver cegamente é a chave para tentar sobreviver no que restou do mundo. A narrativa de “Caixa de Pássaros” é frenética, acarretando no leitor uma sensação incômoda enquanto da leitura. Ponto para ao autor por lograr êxito em tal sentido, visto que por se tratar de um livro do gênero suspense/terror, a sensação tida é intentada. Enfim, lembrei-me dessa obra justamente por levar em conta o campo do desconhecido. No livro de Josh Malerman, o desconhecido é real e gera consequências reais contra aqueles que ousam desbravar as sombras. O desconhecido, portanto, tem razão de o ser e assim permanecer. O mesmo não pode ser dito daquilo que aqui se expôs. Se no mundo pós-apocalíptico de “Caixa de Pássaros” o desconhecido tinha uma razão concreta para assim o ser, em nossa sociedade atual o desconhecido é arquitetado intencionalmente. Pior, pois para nós o desconhecido (que na realidade é o conhecido travestido de desconhecido) acarreta em malefícios somente enquanto assim permanece. Vale destacar ainda que o desconhecido em “Caixa de Pássaros” somente assim o é em sua imagem (não se pode vê-lo), pois é conhecido enquanto os seus drásticos efeitos. Para nós, nem isso. Não se quer saber e nem se tem vontade de desbravar o desconhecido. A opção é pelo mais fácil. O caminho a ser percorrido para que o desconhecido seja compreendido é muito longo, árduo, de modo que para muitos não vale o esforço. Pelo menos em um ponto as realidades da nossa sociedade com a de “Caixa de Pássaros” se encontram: o tatear às escuras. Estamos cegos, mas não cegos em decorrência de uma deficiência visual. Cegos por deliberação, por vontade própria. O desconhecida nos assusta. E ele se faz presente no campo do Direito. O desconhecido é construído pelos próprios indivíduos que deveriam desbravá-lo e escancará-lo. O medo de ter de trilhar o caminho necessário (estudos, leituras, debates, congressos, escrita...) faz com que uma venda seja colocada nos próprios olhos. Ignora-se tudo aquilo que é profundo. Nesse caso, o tatear às escuras acaba sendo uma escolha por ser a postura mais confortável. E assim se vai seguindo, contribuindo para que o desconhecido nos faça tatear às escuras. Arranquemos as vendas. Vislumbremos para além do tatear! Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA MALERMAN, Josh. Caixa de Pássaros.1ª Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |