Artigo do Colunista Khalil Aquim, com reflexões necessárias sobre o autoritarismo. Vale a leitura. '' Na carta magistral, que deve ser conhecida por todo operador do Direito, especialmente quem milita na seara criminal, Ruy Barbosa se vale também de outros filósofos, políticos e juristas que, antes dele, se debruçaram sobre a temática. Entre eles, destaca-se-se “L’Avvocatura”, de Giuseppe Zanardelli, autor do Código Penal italiano de 1890, donde extrai que “il patrocinio d'una causa cattiva è legittimo ed obbligatorio, perchè l'umanità lo ordina, la pietà lo esige, la consuetudine lo comporta , la legge lo impone” (ZANARDELLI, 1879)''. Por Khalil Aquim 'A coluna desta semana deveria ser outra. Enquanto escrevia sobre as graves ilegalidades do Inquérito 4781 do Supremo Tribunal Federal e sobre como um fim nobre, no caso o combate às fake news, não torna legítima a atuação estatal ao arrepio da lei, recebi de um amigo a seguinte mensagem: “como pode um advogado repudiar o fascismo tendo defendido neonazistas?”.
Poderia respondê-lo com a tranquilidade de um atleticano que defendeu um coxa-branca acusado de tentativa de homicídio de policial militar quando em 2009, ao final de partida contra o Fluminense, o clube fora rebaixado e jogadores invadiram o gramado. No entanto, deixei de lado o texto que preparava e decidi dedicar esta coluna a uma resposta melhor, porque o momento político assim o exige. Em abril de 2014 fui nomeado para atuar como defensor dativo em favor de um homem que não tinha recursos para constituir advogado particular. Segundo a pronúncia, ele e seis amigos seriam membros de grupo skinhead, e teriam perseguido e matado um adolescente punk a socos, chutes e facadas. Ladeado pelo brilhante tribuno e grande amigo Heitor Luiz Bender, atuamos naquele plenário, trazendo luz aos fatos e principalmente às circunstâncias periféricas: o grupo de sete supostos skinheads tinha em sua composição um negro, um judeu e um homossexual, além do fato de apenas um ter a cabeça raspada. Grande parte da tese, portanto, girou não sobre a ausência de participação no homicídio em si, mas sobre a motivação, e o não pertencimento a grupo neonazista. Cinco anos mais tarde, no início de 2019, Heitor me convida para atuação conjunta na defesa de um homem acusado de pertencer a grupo neonazista e ter participado do homicídio de um líder de movimento punk. Ao contrário do caso anterior, este efetivamente havia sido parte de grupo skinhead, tendo, anteriormente ao crime do qual era acusado, propagado panfletagens com símbolos e mensagens nazistas, e cometido outros crimes de ódio relacionados àquela ideologia. Entretanto, afirmava ele que o executor do homicídio era outro, sabido por todos e demonstrado nos autos, de modo que sua presença no local do crime não o tornara partícipe de qualquer forma. Neste caso, portanto, o réu assumia ter sido skinhead, negando o homicídio. Diante de acontecimentos recentes, em âmbito nacional e internacional, meu posicionamento político foi o de contrariedade às manifestações apologéticas à Ku Klux Klan e que se valeram de símbolos nazi-fascistas. No entanto, no meu exercício profissional defendi e defendo pessoas acusadas de serem adeptas dessas ideologias de extermínio. Diante disso, a indagação que me foi feita (que não é mais do que uma renovação da tradicional “você defende bandido?”) se reveste de atualidade e demanda pronta resposta. É possível um advogado exercer defesa de acusados com posicionamento político antagônico? Inclusive daqueles cujas ações são abjetas e ultrapassam o intolerável? Há, portanto, causa ou pessoa indigna de defesa? Para as perguntas que todo criminalista já ouviu, a melhor resposta é, ainda e sempre, a carta de Ruy Barbosa em resposta a consulta formulada por Evaristo de Morais: o clássico “O Dever do Advogado” (BARBOSA, 2002). É necessário ressaltar, mesmo que superficialmente, o contexto da época e da consulta. Ruy Barbosa havia sido candidato à presidência da jovem República no ano de 1910, encabeçando a campanha civilista, tendo como opositor o militar Mal. Hermes da Fonseca, vencedor do pleito eleitoral. Foi a primeira vez que o país efetivamente se dividia em uma campanha eleitoral, de modo que a animosidade e as tensões políticas eram enormes. Ao lado de Ruy Barbosa, endossando e apoiando a campanha civilista, estava sempre Evaristo de Morais. Em outubro de 1911, porém, Morais foi procurado por um antigo colega de escola, acusado de grave e infamante homicídio. O caso, por si só, despertara ojeriza da imprensa e da sociedade, que o tratavam como indigno de defesa. Acrescido a isso, o antagonismo entre defensor e acusado: este filiado ao grupo hermista, tendo sido apoiador e articulador político do presidente eleito, enquanto aquele acompanhara e endossara a candidatura civilista. Escreve a Ruy Barbosa então para consultá-lo: “Devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada? Prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laços que me prendem à bandeira do civilismo, cometo uma incorreção partidária?” “O meu senso íntimo não hesita na resposta”, redargue o consultor. O brilhantismo da resposta, formulada por um ferrenho opositor, que acreditava conforme a opinião pública na culpa do acusado, faz dela um marco na história do pensamento jurídico brasileiro, de modo que alguns trechos devem ser transcritos em sua integralidade. ''Civilismo quer dizer ordem civil, ordem jurídica, a saber: governo da lei, contraposto ao governo do arbítrio, ao governo da força, ao governo da espada. A espada enche hoje a política do Brasil. De instrumento de obediência e ordem, que nossas instituições a fizeram, coroou-se em rainha e soberana. Soberana das leis. Rainha da anarquia. Pugnando, pois, contra elas, o civilismo pugna pelo restabelecimento da nossa Constituição, pela restauração da nossa legalidade. Ora, quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais. (…) Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas''. Na carta magistral, que deve ser conhecida por todo operador do Direito, especialmente quem milita na seara criminal, Ruy Barbosa se vale também de outros filósofos, políticos e juristas que, antes dele, se debruçaram sobre a temática. Entre eles, destaca-se-se “L’Avvocatura”, de Giuseppe Zanardelli, autor do Código Penal italiano de 1890, donde extrai que “il patrocinio d'una causa cattiva è legittimo ed obbligatorio, perchè l'umanità lo ordina, la pietà lo esige, la consuetudine lo comporta , la legge lo impone” (ZANARDELLI, 1879). [1]. Ao longo do século passado, outros advogados mostraram seu valor e sua imparcialidade na defesa de seus clientes. Caso notável foi protagonizado por Heráclito Fontoura Sobral Pinto. O advogado, católico fervoroso, defendeu os comunistas Luiz Carlos Prestes e Harry Berger. Indagado, posteriormente, sobre como teria defendido um inimigo da igreja, respondeu com a lição de Santo Agostinho: odiar o pecado e amar o pecador (SOBRAL PINTO, 1979, p. 24). Em sua Epístola 211, mesma carta em que deixou registrada a memorável lição “cum dilectione hominum et odio vitiorum” (AUGUSTINI, 1836, pp. 1185-1194), aludiu ainda à passagem bíblica segundo a qual “qui odit fratrem suum, homicida est” [2]. Principalmente porque, lembremos, todos somos pecadores. Já no século XXI, não foram poucos os que também se viram impelidos a referendar a intransigência da defesa do direito de defesa. Dentre os principais institutos jurídicos no país temos, justamente, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, fundado no ano 2000. Um de seus fundadores, o advogado Márcio Thomaz Bastos, publicou artigo em 2012 no jornal Folha de São Paulo reforçando a necessidade de liberdade do advogado para defender a liberdade. Ressaltava ser desafio-missão do defensor: “enfrentar o Estado — tão provido de armas, meios e modos de atingir o acusado — e ser, ao lado deste, a voz de seus direitos legais” (BASTOS, 2012). No artigo, mencionava também previsão expressa no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja redação trazia que “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar a sua própria opinião sobre a culpa do acusado”. Alterado em 2015, o Código de Ética da OAB mantém a mesma previsão no novo artigo 23, incluindo ali um parágrafo único: Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais. Parece demais dizer, mas, na atual conjuntura, melhor pecar pelo excesso. A Constituição da República reconhece, em seu art. 133, ser o advogado indispensável à administração da justiça. No artigo 5º, uma série de dispositivos tratam do devido processo legal, fundado na garantia da presunção de inocência. O silogismo é básico, mas se revela imperioso: i) Todos somos presumidamente inocentes; ii) Para aplicar uma sanção penal, é necessário comprovar a culpa; iii) Para se comprovar a culpa, é necessário um processo; iv) Para que o processo seja justo e válido, é necessário o respeito às normas legais, conferindo ao acusado direito de defesa; v) Para o exercício do direito de defesa, é necessária atuação de advogado, com toda a liberdade e as prerrogativas profissionais; vi) Logo, para a correta e justa aplicação penal, é necessária a atuação livre e plena do advogado em defesa do acusado. Sendo, portanto, antifa ou neonazista, sendo bolsomnion ou petralha, sendo pobre ou rico, sendo inocente ou culpado, todos têm direito a defesa. E, para tanto, o advogado deve sempre ter plena e total liberdade no exercício da defesa, sendo absolutamente indiferente seu posicionamento pessoal. Ressalta-se: o que se defende de modo incondicional é o direito de defesa, corolário indissociável da presunção de inocência e do devido processo legal. Quem defende um homicida não defende o homicídio em si. Quem defende um traficante não defende o tráfico de drogas. Quem defende um racista não defende o racismo. Há mais de cem anos, quando a ainda jovem democracia brasileira se via politicamente dividida entre apoiadores do militar recém eleito e os defensores de um regime estritamente constitucional, o maior nome do movimento civilista deu enorme lição de civilidade ao descrever o dever do advogado de exercer a defesa de seu inimigo político. Hoje, nossa (novamente) jovem democracia se vê dividida uma vez mais entre apoiadores de militar recém eleito e aqueles que buscam no fortalecimento das instituições democráticas um distanciamento sempre maior do período vivido entre 1964 e 1981. Um século depois, que tenhamos aprendido e que saibamos exercer a lição de Ruy Barbosa. Khalil Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar; Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter; Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas - Apacrimi; Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018). NOTAS: [1] Na tradução de Ruy Barbosa: “o patrocínio de uma causa má não só é legítimo, senão ainda obrigatório; porquanto a humanidade o ordena, a piedade o exige, o costume o comporta, a lei o impõe”. Obra original disponível em https://books.google.com.br/books?id=M14SAAAAYAAJ&pg=PA221&hl=it&source=gbs_selected_pages&cad=3#v=onepage&q&f=false. Acessado em 02 de junho de 2020. [2] 1 João 3:15 - “Quem odeia o seu irmão é homicida”. Referência bibliográficas: AUGUSTINI, Sancti Aurelii. Opera Omnia. Tom. II. 1836. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=nPxbAAAAQAAJ&pg=PA121#v=snippet&q=Cum%20dilectione%20hominum%20et%20odio%20vitiorum&f=false>. Acessado em 02 de junho de 2020. BARBOSA, Rui. O dever do advogado: Carta a Evaristo de Morais. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa. 2002. BASTOS, Márcio Thomaz. Advogado precisa de liberdade para defender liberdade. Artigo do Conjur. Pub. 29/05/2012. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-mai-29/liberdade-advogado-condicao-necessaria-defesa-liberdade#:~:text=%22Quando%20quer%20e%20como%20quer,p%C3%BAblica%20do%20que%20a%20primeira> Acesso em: 02/06/2020. SOBRAL PINTO, Heráclito Fontoura. Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte: Comunicação. 1979. ZANARDELLI, Giuseppe. L’Avvocatura. Firenze: G. Barbèra. 1879.
1 Comment
José Cecílio Bezerra
6/7/2020 11:21:06 pm
Parabéns. Excelentes reflexões.
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