A inserção espaço-temporal de vivência do ser humano dificulta à visualização dos eventos que ocorrem em seu entorno. Isso porque o observador é contemporâneo aos fatos que analisa e, por isso, não consegue se distanciar suficientemente dos fatos para analisar com cautela esses eventos a fim de constatar as rupturas e as continuidades. Análises mais apuradas são possíveis anos, senão décadas após os eventos, assim como ocorreu com a conjuntura das guerras mundiais do século passado que ainda hoje são pesquisadas.
As condições de possibilidade para a compreensão suficiente dos fenômenos surgem com o decurso de tempo, por vezes em curto período, outras nem tanto. Nesse ínterim, a finitude da vida do pesquisador limita as condições de análise. Tanto é que, ao se prostrar de forma extemporânea, as diferenças e similaridades tendem a se tornar mais agudas, e a análise, mais precisa. Nesse sentido, ao se intentar uma análise acerca da concretização do estado democrático de direito, a opacidade do olhar do pesquisador, contaminado pela sua contemporaneidade, deve ser levada em consideração. Dito isso, arriscaremos uma análise de alguns aspectos ainda incompreendidos da modernidade. Ao romper com o medievo, os modernos legaram ao mundo a Revolução Francesa e pretenderam romper com o absolutismo ao elaborar as declarações de direitos e organizar o estado a fim de expandir o liberalismo econômico. Especificamente no campo de Direito, a modernidade se consolidou a partir de vários pressupostos, dentre os quais, o estado de direito que tem como principais elementos o império da lei, a separação dos poderes e a prevalência dos direitos humanos. A base dessas mudanças da modernidade foi a captura da vida, no estado de nudez (homo sacer), como fundamento da soberania. Agamben parte dos dois termos gregos que designam a vida para explicar esse processo. A bíos, vida qualificada, correspondia à vida participativa na esfera pública, nos negócios da pólis, enquanto a zoé, a vida simplesmente vivida, assemelhava o vivente aos animais, para os quais viver é a simples atividade de satisfazer às necessidades do corpo, ou seja, uma vida nua. A zoé é a vida em estado de nudez, mero recurso a ser administrado pelo estado com o objetivo de aumentar as forças estatais. Nessa direção, Agamben explica a metáfora do Leviatã, de Thomas Hobbes, o monstro que tem o corpo formado por diversos indivíduos e que porta a espada: “São os corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente.”[1] Isso demonstra, dentre outras coisas, que, com a criação do estado moderno, o uso da força foi monopolizado pelo Estado, bem como que o direito foi reduzido às leis criadas pelo estado (daí o acerto de Hannah Arendt ao se referir ao declínio do estado-nação e ao fim dos direitos do homem e cidadão, na medida em que sem estado-nação não há direitos do homem e nem cidadania, conforme observou Agamben[2]). Porém, é recorrente, na vivência do tempo presente, a sensação e a percepção de volatilidade, de desmanche, de que as estruturas estão em constante mudança. Nesse período, há um processo de revisionismo das heranças modernas. Essa sensação também alcança o Direito, que se encontra em meio a constantes reformas legislativas justificadas sob o pálido da busca pela concretização das promessas da modernidade. Isso se deve ao fato de que “os tradicionais paradigmas que serviram bem ao estado de direito do século XIX não se encaixam mais para formar a peça articulada de que necessita o estado Contemporâneo para a execução de políticas públicas efetivas”.[3] Sobre os escombros da modernidade novas abordagens surgem para reformular/repensar o Direito, distanciada do monismo jurídico ora vigente,[4] preocupada em disseminar um direito plural.[5] No Brasil, um dos muitos movimentos que buscaram pensar o direito fora dos paradigmas jurídicos modernos foi o movimento teórico-político do “Direito achado na Rua”. Idealizado pelo jurista carioca Roberto Lyra Filho (1926-1986), teve como objetivos alargar a ideia de justiça para além das normas e das formas instrumentais tradicionais. Isso se traduz já mesmo na escolha da nomenclatura, pois a expressão “Direito Achado na Rua” teve como inspiração os versos de Epigrama hegeliano nº 3, de Karl Marx: “Kant e Fichte buscavam o país distante pelo gosto de andar lá no mundo da lua / Eu por mim tento ver, sem viés deformante / O que pude encontrar bem no meio da rua”. Para Lyra Filho, se deveria pensar numa nova concepção de direito, que emergisse dos movimentos sociais, do espaço público, da rua. Noutros termos, um direito construído a partir da participação política. Após a sua morte, o movimento teórico ganhou folego por meio dos esforços do jurista José Geraldo de Sousa Junior (?...), professor na Universidade de Brasília. Pensando o Direito Achado na Rua na perspectiva da profanação proposta por Giorgio Agamben como alternativa ao contexto biopolítico ocidental em que estamos inseridos, percebe-se que há pontos que se coadunam. Segundo o filósofo, a profanação implica na “neutralização daquilo que profana”, pois após ter sido profanado, “o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso”. A profanação “desativa os dispositivos[6] do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado.” Daí porque o verbo latino profanare significa tanto tornar profano quanto sacrificar.[7] Nesse sentido, percebe-se que o Direito Achado na Rua pode ser lido como uma proposta de profanação do direito, na medida em que se tenta devolvê-lo ao uso comum, pretende-se despi-lo do aparato burocrático e romper a relação de dependência do direito para com o estado, a fim de tornar comum o processo de legitimação do direito, hoje dado de forma vertical pelo poder soberano, personificado no Leviatã. Segundo Agamben, é necessário reler o mito da fundação da cidade moderna, dado por Hobbes e Rousseau.[8] Para ele, o relacionamento jurídico-político originário é dado pelo conceito de bando, e não um contrato ou convenção que assinalaria a passagem da natureza ao Estado. Por esse motivo, a democracia está condenada à impotência toda vez que enfrentar o poder soberano e é “incapaz de pensar, verdadeiramente, na modernidade, uma política não estatal”.[9] Camila Leonardo de Albuquerque Nandi Advogada Especialista em Direito Empresarial Mestranda em Desenvolvimento Regional Luiz Eduardo Cani Mestrando em Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado Professor de Direito na Universidade do Contestado Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina Professor Titular de Filosofia nos cursos de Graduação e no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado [1] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 122. [2] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer, p. 123-124. [3] BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, p. 769. [4] O monismo jurídico é a concepção, consolidada ao longo da modernidade, segundo a qual o Estado é o centro único do poder e o detentor do monopólio de produção das normas jurídicas. Enquanto sinônimo de direito estatal, o direito encerra-se nos textos legais emanados do poder legislativo. Nesse contexto, a lei vale pelo simples fato de ser a lei, de modo que sua legitimidade advém da mera observância dos procedimentos previamente estabelecidos, isto é, das normas que regulamentam o processo legislativo. In: CARVALHO, Lucas Borges de. Caminhos (e descaminhos) do pluralismo jurídico no Brasil. In: WOLKMER, Antonio Carlos; VERAS NETO, Francisco Quintalha; LIXA, Ivone Fernandes Morcila. (Org.). Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 14. [5]“ Para começar há de se designar o pluralismo jurídico como a multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidos por conflitos ou consenso, podendo ser ou não oficial e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.” In: WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 219. [6] “chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que e talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar. [...] Recapitulando, temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substancias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-corpo entre os viventes e os dispositivos. Naturalmente as substâncias e os sujeitos, como na velha metafísica, parecem sobrepor-se, mas não completamente. Neste sentido, par exemplo, um mesmo indivíduo, uma mesma substancia, pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação: o usuário de telefones celulares, o navegador na internet, o escritor de contos, o apaixonado por tango, o não-global etc etc.” In: AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra travessia, v. 5, n. 1, p. 9-16, 2005, p. 13. [7] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 68. [8] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer, p. 115 [9] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer, nua, p. 116 Comments are closed.
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