Quem dera lidássemos apenas com ficções no Direito. As aplicações teóricas seriam sempre no campo da hipótese. A dogmática sobreviveria apenas com os exemplos ilustrativos a fim de dar vida e mais compreensão para os seus ensinamentos. Vidas reais, tangíveis e concretas não seriam atingidas. Os equívocos nas aplicações de teorias, quando constatados, poderiam ser corrigidos no próprio campo formal, quem sabe até mesmo por uma simples nota. Contudo, a coisa não é bem assim. Toda a teoria no e do Direito possui uma aplicação prática, admita-se ou não. Alguns torcem o nariz quando se fala em filosofia no campo jurídico, por exemplo, o que é uma pena, pois se o Direito fosse de fato levado a sério por todos (ou pelo menos pela maioria), muitos tropeços vistos por aí poderiam ser evitados. Não só a filosofia é um campo do saber importantíssimo para o Direito. É a transdisciplinaridade que se faz cada vez mais presente e necessária no campo jurídico. O bom estudante, operador, ator, profissional, jurista, enfim, aquele que está situado no Direito, leva em conta os demais saberes em conjunto com o Direito. Há de ler muito. E a literatura desempenha um papel importantíssimo nesse viés, inclusive a título de compreensão das ficções do e no Direito.
A literatura dá vida ao ficcional. A literatura não se ampara apenas no irreal, no inventado, no criado pela imaginação, mas também e principalmente assim o faz. Seja como for, a partir do momento em que a escrita da literatura se inicia, entra-se no mundo do ficcional. Mesmo quando o que dá o mote para a literatura é algo observado do real (“baseado em fatos reais”), o reino daquilo que se cria é estabelecido no ficcional. Tem-se assim a ficção. Um romance é uma ficção narrada. E os autos de um processo, também? A fantasia é algo que nos guia, que nos ampara, que nos dá o suporte necessária para aguentar a realidade. Mas enquanto num romance a ficção criada gera consequências não especificamente diretas no leitor (compreensão, emoção, senso de discernimento, conhecimento, aperfeiçoamento...), uma narrativa processual influi diretamente na vida dos envolvidos no caso que ali que se conta. Enquanto num romance o autor possui poderes ilimitados sobre a vida de personagens, de cenários, de ambientes, de tudo, num processo judicial há diversas limitações. Duas partes contam diferentes versões de uma mesma história. Essa história possui uma base na realidade (ou pelo menos assim deveria ser), ou seja, não se pode dizer o que bem entender sobre o enredo. Claro que alguns tentam superar alguns aspectos da realidade com invencionices, convicções pessoais, achismos ou até mesmo para dar uma enfeitada na trama. Convencer já é outra história. Vale lembrar que numa situação processual há uma história que ocorreu, mas a dificuldade reside na tentativa de expor o ocorrido de forma mais próxima possível daquilo que de fato aconteceu. Alguns dizem ser possível alcançar completamente a história toda. Bobagem. Isso é mito. Ora, são duas partes contando a mesma história de modos diferentes, competindo a uma terceira pessoa analisar essas histórias e dizer qual é a mais crível. Nesse ato de decidir a mais convincente cria-se uma nova ficção. Mesmo quando apenas se diz que aquela ou outra história é a que se tem como correta, a forma com a qual isso é dito já se trata da construção de uma nova ficção, pois a narrativa ali também se faz presente, a qual é dita pela voz desse terceiro que decide. Ficção sobre ficção. O Direito necessita das ficções, mesmo porque num determinado nível o próprio Direito é uma ficção. Elas são necessárias, muitas vezes, para que o próprio Direito se faça entender. Elas também são enquanto criadas pelo próprio Direito, mas numa perspectiva em que seus reflexos são percebidos num plano concreto. São as consequências tidas na realidade. Ficções quem geram efeitos, tal qual no Direito se vê. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |