Já foi aqui dito um pouco sobre as ficções no e do Direito. Digo então mais um pouco. São apenas notas breves, sem qualquer pretensão de profundidade, já que a questão possui contornos de grandes proporções. Sigamos então.
Após a publicação da primeira parte desse texto, tomei conhecimento de um artigo bastante interessante que também trabalhou essa questão. “Processo e Ficção”, do colega Dyego Phablo, tece uma diálogo acerca do ficcional no processo, chegando consequentemente no tema da verdade no processo. O autor assim pontua:
Eis aí, em tal reflexão, o mote daquilo que foi dito no texto anterior, a saber, enquanto a ficção de um romance dá vida à arte e os reflexos na realidade se dão por vias “indiretas” (compreensão, emoção, senso de discernimento, conhecimento, aperfeiçoamento...), uma redação jurídica dá vida à própria vida, só que os reflexos dessa construção ficcional se traduzem em consequências diretas que afetam a vida dos envolvidos na narrativa. Essa linha de raciocínio aqui exposta é uma das questões que evidenciam a impossibilidade de se falar em “verdade real” no processo. Isso é questão mais do que superada. Mas ainda existe gente vendendo esse “conceito” que não se sustenta. Uma construção teórica forte que afasta por completo qualquer tipo de resistência daqueles que dizem a “verdade real” pode ser encontrada na obra de Salah Khaled Jr., o excelente “A Busca da Verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial”. O autor ainda deixa claro nessa obra que sua intenção não é afastar por completo a questão da verdade, porém, busca, sim, desconstruir o conceito pelo qual a verdade é tida. Verdade Real? Um conceito mais do que forçado. Uma das várias formas ficcionais do Direito, com o “plus” problemático de que se tenta convencer como algo real. Verdade aproximada ou relativa? Uma forma mascarada de explanar o que não é possível conceituar de tal modo. Assim, não defendendo também uma ausência absoluta da verdade, Salah Khaled propõe para que se vá além de tal ambição, galgando-se por meio dos “rastros da passeidade”. Os elementos que se fazem presentes ao julgador servirão como os tais rastros da passeidade, e é através destes que se analisará o seu caráter analógico. O fato analisado não pode mais ser demonstrado ou observado, a não ser por meio da narrativa que se ampara pelas provas, ou seja, somente mediante uma reconstrução analógica do ocorrido é que poderá se fundamentar um entendimento. Logo, o signo do "mesmo" não pode mais ser atingido. Entretanto, não se pode dizer que o signo "outro" é aquele utilizado quando da observação dentro do contexto aqui exposto, vez que tal conceito ficaria também equidistante do almejado. Deste modo, a solução para o enquadramento ontológico de tal questão é que a verdade deve ser tida como produzida, ou seja, sob o signo do "análogo". Tal é o "meio termo" mais adequado encontrado e proposto pelo autor. O que é dito no processo sempre se trata de uma forma de ficção, pois o ali dito não se trata mais do dito sobre o ocorrido em si, e sim o dito sobre o que é dito sobre o ocorrido. A decisão, em tal viés, é uma construção ficcional sobre uma ficção ali já narrada. Mesmo que amparada e construída com base no real, o resultado obtido é ficcional. Tomemos um exemplo ilustrativo: um cidadão é acusado pela suposta prática do crime de furto. Há a versão da acusação, lastreada em alguns elementos que sustentam sua tese, que diz que o cidadão praticou o furto. Há também a versão da defesa, de igual modo pautada em elementos que corroboram com sua versão, a qual sustenta a inocência do acusado. O magistrado, com base nessas duas histórias que lhe são contadas, colidindo ou corroborando com os demais elementos existentes no processo (os diversos tipos de provas, por exemplo), formará a sua decisão e prolatará uma sentença. Esse texto construído, analisado aqui enquanto uma forma de ficção, acarretará em consequências práticas para todos os envolvidos, principalmente ao acusado. Se condenado, a imposição de uma reprimenda estatal. Se absolvido, a liberdade. É por isso que se diz que a ficção no âmbito do Direito acaba criando efeitos práticos e sentidos por pessoas reais. A problemática aqui minimamente tracejada possui longos e profundos contornos. A intenção é a de meramente despertar a atenção dos leitores, principalmente, por exemplo, daqueles que acreditam na tal da “verdade real” sem que se deem conta do embuste que se esconde por trás desse “conceito”. O Direito possui várias ficções (num determinado nível até mesmo o próprio Direito o é). Cumpre a nós nos atentarmos para elas. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA KHALED JR., Salah Hassan. A Busca da Verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial. 1ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013. PHABLO, Dyego. Processo e ficção. Disponível em:http://piauijuridico.blogspot.com.br/2016/10/processo-e-ficcao-por-dyego-phablo.html Acesso em 21/01/2017.
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