Depois de ter fixado em meu artigo anterior o fator que delimita o campo do direito penal econômico: o que é ordem econômica penalmente tutelada? Destarte, dois são os caminhos para definir o que vem a ser a "ordem econômica". Um que reconhece um conceito que acaba por abranger todas as ofensas à regulação da produção, industrialização e divisão de bens e serviços - amplo - , e outro que reconhece um conceito que tutele os interesses supraindividuais relacionados à ordem da economia instituída e dirigida pelo estado[1] - estrito -. Em sentido estrito, o Direito Penal Econômico englobaria aqueles delitos que atentem contra a atividade interventora e reguladora do Estado, na economia, incluindo ainda todas as infrações que maculem as condições essenciais de funcionamento do sistema econômico, formando então uma categoria homogênea. Seriam aqueles injustos penais que lesionam ou colocam em perigo a ordem econômica entendida como a regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia.[2] Enrique Bacigalupo define o delito econômico a partir de um conceito restrito de ordem econômica, afirmando que: os delitos econômicos são todas as condutas descritas em leis que acabam por ofender a confiança na ordem econômica vigente e que colocam em perigo a própria existência e as formas de atividade dessa ordem econômica.[3] Em pensamento dogmático similar, Suárez González[4] e Rodríguez Murillo[5] também defendem essa posição restritiva do direito penal econômico. Nesse diapasão Tiedemann argumenta que o sentido estrito do direito penal econômico coincide com o conceito material da ordem econômica cunhado em sua origem e, portanto, seria o conjunto de normas penais que tutelam a ordem econômica. Nesse sentido leciona Rodrigo Sánchez Rios, valendo-se dos ensinamentos de Tiedmann, afirma que o sentido estrito consistiria em transgressões no âmbito do direito administrativo-econômico, isto é, aquelas que lesionam a atividade interventora e reguladora do estado na economia, na medida em que o sentido amplo alcançaria além destas condutas, todas aquelas figuras típicas que violam bens coletivos supraindividuais econômicos relacionados com a regulamentação jurídica da produção, distribuição e também consumo de bens e serviços.[6] Sob esta ótica, o bem jurídico protegido pelo direito penal econômico consiste na ordem econômica existente. Isto é, o estatuto jurídico que regula a economia de mercado, como: vedar o monopólio e vedar práticas que coloquem em risco a livre concorrência.[7] Portanto, o direito penal econômico em sentido estrito está dedicado ao estudo de delitos que lesionem ou coloquem em risco a atividade reguladora do Estado – lato sensu – na economia e as consequências jurídicas que a lei prevê para os infratores.[8] Em acepção ampla o Direito Penal Econômico não detém condições sistemáticas de delimitação do alcance do seu horizonte cognitivo nos delitos econômicos, isso, porque confere atenção à qualidade da atividade afetada. Um crime de ofensa individual poderia ser considerado um delito econômico sempre que a execução da conduta alcançasse atividades econômicas reguladas no segmento da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Num enfoque economicista, os delitos econômicos seriam uma infração que lesionem ou coloquem em perigo uma atividade diretora, reguladora ou interventora do Estado na economia. Ou seja, seriam comportamentos descritos em lei que lesionam a confiança da ordem econômica vigente, ou ainda, que afetam a confiança de alguma instituição em particular, portanto, que coloquem em perigo a própria existência dessas formas de atividade nessa ordem econômica. Nesse diapasão, Bujan Perez sugere um conceito amplo que não seja contingenciado pelas circunstâncias do caso concreto, mas sob uma perspectiva ex ante do bem jurídico tutelado.[9] Para este autor, o direito penal econômico não alcança somente as infrações definidas no conceito restrito, mas também outras figuras delitivas que possuem mediatamente uma finalidade de proteção da regulação estatal da economia.[10] Portanto, ocorreria violação da ordem econômica em sentido amplo quando houvesse alguma violação à regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Isto é, aquelas violações que, ainda que não afetem diretamente a regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia, lesionem ou coloquem em segundo plano a regulação jurídica de produção, distribuição e consumo de bens e serviços.[11] Diante dessa distinção e para propor uma visão centrífuga do direito penal econômico, necessário fazer uma verificação da maneira em que é abordado o tema de delimitação do bem jurídico na ordem econômica. Parece que há uma falha na forma de se compreender a ideia de ordem econômica. Evidente que não há duas acepções que coexistem, posto que a segunda (estrita) substituiu a primeira através de uma sucessão histórica, onde o direito penal econômico de primeira geração, pretendia defender a atuação do estado na economia, já o direito penal econômico de segunda geração – atual – pretende trabalhar com a regularidade da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Logo, não se trata de distinguir, para o efeito de tutela penal a noção econômica lato sensu ou estrito sensu, como propõe toda a doutrina.[12] O Direito Penal Econômico surgiu com o propósito de blindar a intervenção do Estado na economia. O projeto do direito penal econômico contemporâneo é muito diferente do que tínhamos quando do seu surgimento, principalmente a partir dos anos 60, quando houve a substituição dos modelos de bem jurídico e ordem econômica. Essa mudança ocorreu por razões político-histórico, por razões de caráter filosófico e ainda por razões de caráter sociológico. Do ponto de vista político-histórico deve se cogitar no advento de um estado social e democrático de direito, bem estar social – Wellfare State – e de uma intervenção fortíssima do estado para reerguê-lo de um modelo de intervenção que quer reestabelecer o País depois da quebra da bolsa. Com base em políticas democráticas, uma síntese entre um estado liberal e a antítese de um estado intervencionista puro, esses estados democráticos e sociais de direito respondem pelo modelo penal econômico de segunda geração. Essa transição se deu juntamente com o vetor filosófico concernente da filosofia da linguagem, vetor fundamental para que se passe do modelo de ordem econômica de primeira geração para o de segunda. Do ponto de vista sociológico, um vetor fundamental para a passagem da primeira para a segunda geração, denominada sociologia do risco, foi a ideia de sociedade de risco. Foi sob o influxo desses três vetores que ocorreu a mudança do perfil do direito penal econômico. Os autores falam em direito penal econômico em sentido estrito, ou em direito penal econômico em sentido amplo, as vezes optando por um ou por outro, dando a impressão de que ambos coexistem, mas não se trata de fazer uma escolha entre esses dois modelos, deve-se observar que o perfil do direito penal econômico mudou, ele se dá para corresponder a uma meta de proteção ampla que assegure a regularidade da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Os autores que adotam a primeira opção partem da premissa de que o direito penal econômico em sentido amplo é mais restrito, com uma intervenção penal menor, e desempenhando a função de intervenção mínima do Direito Penal. Nos parece que esse pensamento está equivocado, não há nada de liberal em um direito penal que sirva para proteger a intervenção do Estado na economia, porque o Estado é o protegido. É dizer, o poder punitivo estatal está sendo usado pelo Estado para se auto proteger.[13] Já em um direito penal econômico de segunda geração, quem é protegido com a regularidade da relação de consumo, distribuição e produção de bens e serviços são os consumidores, os trabalhadores e os empresários, ou seja, a sociedade. Uma grande crítica que se faz ao direito penal econômico é quanto a sua delimitação, para isso, deve-se ingressar nas particularidades da ordem econômica de cada lugar – território, a cada momento –, cada período, ir além dos contornos esfumaçados de bens jurídicos, procurar saber em que termos se dá essa ordem econômica. A Ordem Econômica só é definível na concretude do tempo e do lugar, somente é possível constatar o que vem a ser regularidade da produção, distribuição e consumo de bens e serviços, se o estudo for aprofundado e de certa maneira "descer" em economias concretas de cada país em uma determinada época, por isso o conceito de bem jurídico possui contornos difíceis. Não há espaço para delimitar um conceito abstrato de ordem econômica que não leve em conta uma estrutura social e concreta, da mesma forma que não se pode cogitar um conceito atemporal de crime econômico.[14] No mesmo sentido, assevera Fábio Roberto D'Avila que o núcleo rígido do direito penal, assim como o bem jurídico penal, mesmo em relação ao direito Penal Econômico, desenvolve-se através do reconhecimento de um fragmento da realidade, porém, isso só é obtido a partir de opções legislativas democraticamente concebidas em uma comunidade historicamente datada que sinalizou positivamente para uma boa e desejada existência que deve ter continuidade.[15] CRÍTICA À PROPOSTA DE EXISTÊNCIA DO SENTIDO ESTRITO E SENTIDO AMPLO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO A dificuldade enfrentada pelos doutrinadores ao avançar no conceito de ordem econômica, reside no fato de se tentar minimizar a complexidade do tema que lhe é imanente, sem tentar abandonar a clausura de um saber que não vai muito além da própria unidade disciplinar. É no diálogo entre as ciências penal e econômica que se pode encontrar as condições ideais para o reconhecimento de valores comunitários afeitos à vida econômica e que comportam limites de identificação.[16] A doutrina, de modo geral, partindo do pressuposto de que o conceito de ordem econômica é indefinível, passa por alto e afirma que todo bem jurídico é assim, indefinível. Não é preciso ir muito longe, basta imaginar comunidades indígenas onde o conceito de vida ou patrimônio é completamente distinto do que entendemos na sociedade. Vejamos, como se pode delimitar o bem jurídico VIDA em determinadas tribos indígenas, nas quais ela apenas começa com o acolhimento por parte da tribo ao nascituro. Deve-se partir da premissa de que o saber econômico orienta o direito penal em seu horizonte cognitivo a fim de que o poder punitivo tenha condições de criminalizar somente as práticas consideradas ofensivas a uma política econômica na exata medida em que possa subverter o reconhecimento simbólico de valores consagrados como relevantes ao desenvolvimento humano. O livre mercado, por exemplo, apresenta-se ao direito penal como um objeto material de tutela legítima, não enquanto um valor-em-si, ou tampouco porque a maioria dos ordenamentos constitucionais o consagra positivamente em sua dimensão axiológica, mas sim porque em um desenvolvimento histórico ele tem se mostrado relevante para a consecução menos onerosa possível dos objetivos do homem.[17] Dessa ideia, Eduardo Correia delimita acertadamente sobre o tema, adotando um critério material-formal-substantivo, afirma que um direito penal econômico legítimo seria aquele que tutela materialmente ofensas supraindividuais da ordem econômica através de tipos-de-ilícito ajustado a essa forma peculiar de proteção.[18] Resta cada vez mais evidente, no cenário brasileiro, que estamos inseridos em um capitalismo de compadrio, ou crony capitalism.[19]-[20] Essas relações - compadrio - são traduzidas, por exemplo, em favoritismo em licitações, à empresários, em concessões, em subsídios do governo ou outras formas de intervencionismo estatal, como o que vem sendo investigado pela Polícia Federal que ocorreu junto a empreiteira Odebrecht. Nesse diapasão Luigi Zingales afirma que nessa espécie de capitalismo as regras são distorcidas a ponto de favorecerem as grandes empresas, e não a coletividade de maneira geral. O compadrio pode ser objeto da corrupção, mas busca sempre atribuir uma característica de licitude a essa atividade. Há, inclusive quem o denomine de corrupção "legal" ou institucional, alteram-se as regras para que determinada empresa seja favorecida, sem violação da lei, distorcendo o sistema, tornando-o menos eficiente e menos justo.[21] O autor constatou que essa forma de capitalismo de compadrio é mais comum no sul da Europa e na América Latina, mas cada vez mais os Estados Unidos têm cedido espaço aos interesses particulares em detrimento de uma economia de livre mercado.[22] Isso é um grande problema, não só para o Brasil, mas para todas as economias do mundo. O capitalismo de compadrio freia, quase que por completo, o desenvolvimento de um país, é o que diz o Comitê de Desenvolvimento Econômico. (Committee for Economic Development.)[23] Esse foi o principal fator e que fez com que o povo norte americano deixasse de dar seu suporte ao sistema capitalista dos Estados Unidos no período pós guerra. O estudo afirma que se o capitalismo de compadrio persistir e continuar a se propagar, vai acabar exaurindo toda a vitalidade da economia mundial. A simbiose entre os interesses privados e o governo tem um potencial destrutivo enorme, capaz de mudar a economia de um país em menos de uma década. É nesse contexto que se torna cada vez mais forte a influência do direito penal econômico com o objetivo de frear esse fenômeno, e acabar por estimular novamente o livre mercado. Fernando Martins Maria Sobrinho Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade Positivo. Pós Graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo. Advogado. Membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/PR. Professor de Direito Penal do Curso Jurídico [1] BAJO FERNÁNDEZ; Miguel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 2001. p. 3-20. [2] BAJO FERNÁNDEZ; Miguel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 2001. p. 54. [3] BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal económico. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p. 35. [4]SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos. Sobre la tipificación del delito contable en el derecho español. In: MAZUELOS COELHO, Julio (comp.). Derecho penal económico y de la empresa: concepto sistema y política criminal. Lima: San Marcos: 1996. p. 10. [5] RODRÍGUEZ MURILLO, Gonzalo. El bien jurídico protegido en los delitos societarios con especial referencia a la administración desleal. La administracion desleal. Consejo General del Poder Judicial. Madrid, 1999. p. 18. [6] RIOS, Sánchez. Reflexões sobre o delito econômico e sua delimitação. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 775. p. 433-448. 2000. [7] TIEDEMANN, Klaus. El concepto de derecho económico, de derecho penal económico y de delito económico. Cuadernos de política criminal. Edersa, n. 28, Madrid. 1986. p. 65-70. [8] CERVINI, Raúl. La perspectiva integrada del derecho penal económico. In Nuevos desafios en Derecho Penal Económico. Montevideo: IBdeF, 2012. p. 142. [9] BUJÁN, Perez, Carlos Martínez. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte General. 2. ed. Valencia: Tirand lo Blanch, 2007. p. 118. [10] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 60. [11] BAJO FERNÁNDEZ; Miguel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 2001. p. 56. [12] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 39; CASTELLAR, João Carlos. Direito penal econômico versus direito penal convencional: a engenhosa arte de criminalizar os ricos para punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 203-211. [13] Veja, não está tratando no texto de que o detentor do poder punitivo não pode proteger seus interesses, ele até pode proteger seus interesses, existem crimes contra a administração pública, p. ex. o peculato, mas o estado através do seu poder punitivo está legitimado a proteger-se, ou proteger a administração pública, pois é através dela que ele cumpre seus préstimos sociais, logo, a meta de proteção nesses casos não é o estado, mas todos nós. [14] CERVINI, Raúl. Derecho Penal económico: concepto y bien jurídico. RBCC, São Paulo, vol. 11, abr/jun. 2003. p. 105. [15] D'AVILA. Fábio Roberto. Aproximações à teoria exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo. RBCC, n. 80. 2009. p. 13. [16] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 80. [17] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 90. [18] CORREIA, Eduardo. Notas críticas à penalização de actividades económicas. Coimbra: Centro de Estudos Judiciários, 1985. p. 13. [19] O capitalismo de compadrio é um termo que descreve uma economia onde o sucesso dos negócios é estreitamente ligado as relações entre o governo e o empresário e as regras de mercado são mudadas para atender esses "novos"interesses. [20] Vide todas as empresas investigadas na ação penal, popularmente conhecida como "lava-jato" que vem monstrando ao Brasil um forte esquema de corrupção entre a máquina do estado e empresas privadas. [21] ZINGALES, Luigi. Um Capitalismo para o povo. Reencontrando a chave da prosperidade americana. p.99 [22] ZINGALES, Luigi. Um Capitalismo para o povo. Reencontrando a chave da prosperidade americana. p.100-110 [23] Crony Capitalism: Unhealthy Relations Between Business and Government. acesso em 21/03/2016. através da url: https://www.ced.org/pdf/Embargoed_Report_-_Crony_Capitalism.pdf Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |