Artigo de Rafaela Iunovich König no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Sócrates, na Grécia antiga, morreu por envenenamento após os cidadãos o condenarem por não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. A liberdade de expressão, hoje consagrada pela Constituição Federal Brasileira, castigou um dos primeiros e mais aclamados filósofos. Já no Brasil, o dia 21 de abril é anualmente celebrado em homenagem à vida e morte do inconfidente Tiradentes. Não obstante em enforcá-lo, a Coroa Portuguesa o esquartejou em quatro partes, sendo essas espalhadas pela estrada de acesso a Ouro Preto. Por fim, o sinal mais enfático da soberania de um Estado autoritário e literalmente despótico: a cabeça exibida na praça central da cidade''. Por Rafaela Iunovich König A pensar como o filósofo John Locke, o ser humano nasce como uma folha em branco e tem sua personalidade moldada a partir dos experimentos sociais vivenciados. Ao passo que as sociedades são formadas, acompanhada desse evento nasce também a concepção de justiça, sendo essa mutável a partir do contexto social e histórico em referência.
Surgem então os meios de penalização moldados a cada época. Por volta de 1810 a 1815, o pintor espanhol Francisco de Goya retratou através da gravura intitulada “Por una navaja” a execução de um homem condenado à morte, submetido à asfixia à medida que o aparato posto por trás de sua cabeça era manuseado pelo carrasco. O título da obra faz referência ao crime cometido que em tese justificou a sentença de morte. Considerado motivo plausível para a barbárie, portar uma navalha levou o cidadão a ser executado em praça pública sob os mais diversos olhares. E não à toa: a “punição exemplar” tinha como intuito claro escancarar o poder do Estado sobre corpos alheios, além de servir como lição a quem cogitasse avocar postura parecida. Se atualmente as penas de morte são encaradas como a maior punição passível de ser recebida em decorrência de crimes violentos e moralmente reprováveis, o mesmo não ocorria em circunstâncias passadas. Figuras importantes da história mundial foram mortas sob o pretexto contestável de assumirem condutas imperdoáveis. Sócrates, na Grécia antiga, morreu por envenenamento após os cidadãos o condenarem por não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. A liberdade de expressão, hoje consagrada pela Constituição Federal Brasileira, castigou um dos primeiros e mais aclamados filósofos. Já no Brasil, o dia 21 de abril é anualmente celebrado em homenagem à vida e morte do inconfidente Tiradentes. Não obstante em enforcá-lo, a Coroa Portuguesa o esquartejou em quatro partes, sendo essas espalhadas pela estrada de acesso a Ouro Preto. Por fim, o sinal mais enfático da soberania de um Estado autoritário e literalmente despótico: a cabeça exibida na praça central da cidade. Semelhante ao interpretado por Goya, durante os séculos XIII e XIX, a influência da Igreja Católica instituiu conjuntamente ao Estado o período da Inquisição. Discordar dos preceitos católicos instaurados à época poderia motivar perseguição, tortura e a morte – tudo legitimados e auxiliado pelas autoridades locais. Mais distante, inspirado pelas Leis de Talião, durante o Primeiro Império Babilônico, o Rei Hamurabi instaurou como forma de controle e organização social um conjunto rigoroso de leis. De acordo com as normas vigentes, roubar um templo ou uma casa estava entre os crimes que condenariam um cidadão à morte[3]. Os cenários históricos anteriormente expostos ainda que muito antigos culminam em resquícios presentes no sistema jurídico contemporâneo. A estruturação da sociedade bem como as modalidades de execução de pena ganharam novos contornos e delimitações. Nesse sentido, até mesmo a maneira de execução modernizou-se com o advento da tecnologia: ao invés de fogueiras ou o derrame de óleo fervente na boca e orelhas, como sugeria o Código de Manu (aproximadamente 1000 ac), a cadeira elétrica, posteriormente as armas de fogo e injeções letais encarregaram-se de pôr fim à vida daqueles penosamente condenados à violação mais severa dos direitos fundamentais a qual um ser humano já fora submetido. Embora a pena de morte tenha sido abolida em muitos países ou ainda expressamente diminuída - como no Brasil, em que somente é administrada referente à crimes de guerra - o sistema carcerário não se mostra menos cruel em questões humanitárias. A precariedade dos presídios e a negligência do Estado brasileiro em fornecer condições básicas de saúde e higiene tornam o ambiente muitas vezes impróprio à ressocialização. Ainda nesse cenário, as facções ocupam espaço decisivo na perpetuação da reincidência ao crime. A conivência de um Estado omisso permite que tais facções tenham tamanha influência sobre os encarcerados que, segundo o livro “Prisioneiras”, de Drauzio Varella, 90% dos homens fazem parte de facções enquanto 100% das mulheres estão subordinadas a elas nas penitenciárias paulistanas[1]. Em suma, a função social do espaço penitenciário e da pena ocupam tão somente o imaginário. Na perspectiva pragmática de Michel Focault no livro “Vigiar e Punir”, “desde 1820, se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade”[2]. A ampliação de direitos humanos a partir das revoluções sociais e o aprimoramento dos estudos e pesquisas que indicam a ineficácia da pena de morte como forma de coibir crimes possibilitaram uma nova visão referente aos meios coercitivos. Ao contrário, a pena de morte como forma de penalização não parece surtir o efeito desejado: prova disso é a não erradicação do crime, que indubitavelmente existirá enquanto houver sociedade. O problema estrutural de um sistema corrompido desde o início da vida do indivíduo reflete em uma sociedade desigual, na qual as oportunidades ofertadas são preferencialmente pertencentes à parcela privilegiada da sociedade, que está nessa condição muitas vezes alheia aos seus méritos: simplesmente porque herdou no sobrenome tal posto. A mesma lógica ocorre no âmbito jurídico: penas desproporcionais são aplicadas sob a influência da cor da pele, status social e dinheiro. Por uma navalha o homem retratado por Goya morreu em consequência da violência institucionalizada – possivelmente o mesmo não ocorresse com membros da alta classe. Alheia à legalidade, a pena de morte também surge no meio social de maneira criminosa. Os linchamentos revelam uma sociedade que busca justiça com as próprias mãos movidas pelo desejo de vingança e poder momentâneo, somado ao sentimento de impunidade ora ocasionado pelo Estado. Seguramente, a proliferação dessas condutas seja oriunda do Estado ou da sociedade demonstra a passividade diante de um caos gigantesco: a violência como meio de solução, aprisionando o homem ao modo primitivo e brutal de resolver conflitos já historicamente comprovado ineficiente. O raciocínio leva a compreender que condenar alguém à pena capital está mais atrelado a suprir o desejo de vingança do que aos mais diversos conceitos de justiça, uma vez que a execução do indivíduo não evita a reincidência do mesmo e de novos crimes. O flerte com experiências passadas pode ser esclarecido através da teoria do filósofo Gianbattista Vico “corsi e ricorsi”, que compreende a vida como “uma rede de vivências e revivências históricas. ” Para Vico, a sociedade ruma ao progresso, mas não de forma linear: a história acontece de maneira cíclica, de modo a repetir comportamentos do passado[4]. A premissa “bandido bom é bandido morto” amplamente abordada e difundida nos meios sociais dos últimos anos compartilha em si os mesmos anseios carregados pelos soberanos há milhares de anos. O salto temporal entre a atualidade e as referidas sociedades históricas não é limitado meramente pelo tempo. O progresso na área acadêmica e de pesquisas viabilizou a compreensão de que tais métodos ultrapassados não contemplam o objetivo atual principal de reduzir a criminalidade. A morte como pena para crimes hediondos, que naturalmente causam maior comoção social e revolta, bastaria apenas como forma de realizar o desejo íntimo de seus defensores ferrenhos em alusão ao retrocesso, sem que qualquer racionalidade fosse adotada. É humanamente compreensível que crimes como o estupro e o homicídio realcem o anseio por uma punição severa a mesma medida em que os danos foram causados. Mas não seria racional e proporcional aplicar tais penas. Em síntese, se a aplicação de pena de morte passasse a ser admitida no Brasil, indubitavelmente perpetuaria a desigualdade dentro do âmbito jurídico e quem a sofreria seria a mesma parcela não-privilegiada da sociedade que hoje é encarcerada em massa no país. Para além da desumanização inerente à condenação à morte, dados da DPCI (Death Penalty Information Center – Centro de informações sobre a Pena de Morte) revelam que a taxa de assassinatos é maior em estados norte-americanos com pena de morte do que nos quais não admitem a prática, além da problemática envolvendo a condenação injusta de inocentes, admitindo que o sistema penal não só é suscetível a falhas como essas podem ser recorrentes[5]. Em hipóteses mais otimistas, a inocência é comprovada antes que de fato a pena seja aplicada, mas ainda assim há brecha para que a sentença ocorra de maneira equivocada. Nesse panorama, a produção da Netflix “Olhos que condenam” evidencia através da arte como o racismo associado a uma sucessão de erros judiciais foram capazes de condenar cinco jovens negros – entre eles, quatro menores de 16 anos - pelo crime hediondo de estupro. Embora não tenham sido condenados à morte, para além da pena de privação de liberdade, a desestabilização das famílias dos envolvidos e a dificuldade em se reinserir na sociedade após a saída da prisão salientam o óbvio: certamente mais difícil, a vida posterior à prisão nunca é a mesma. Dificilmente a questão será um dia superada. Ainda que os países se oponham à morte como modalidade de pena, parte da população tende a entender o sofrimento como maneira legítima de consequência para os eventuais delitos cometidos – como aqueles que sugerem prisão perpétua a fim de que o indivíduo padeça até seu último respiro. Ademais, se o próprio Estado reconhece o assassinato como um crime grave, qual seria o respaldo legal que o legitimaria a agir da mesma forma em que condena um indivíduo? Rafaela Iunovich König Acadêmica do sexto período da faculdade de Direito da UNINTER. NOTAS: [1]VARELLA, Drauzio (2017). Prisioneiras. São Paulo: Companhia de letras, 1º volume. [2] FOUCAULT, Michel (2002). Vigiar e punir. São Paulo: Editora Vozes. [3]Disponível em <https://www.estudopratico.com.br/codigo-de-hamurabi/>Acesso em 02 de Nov. 2020. [4]Disponível em <https://elpais.com/cultura/2017/01/04/babelia/1483548787_646594.html> Acesso em 02. de Nov. 2020. [5]Disponível em<https://www.infoescola.com/direito/pena-de-morte/> Acesso em 10 de Nov. 2020.
1 Comment
Gustavo
12/2/2020 06:29:00 pm
Excelente artigo. Parabéns à acadêmica que o escreveu!
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