O termo “violência conjugal” vem sendo, a cada dia mais, utilizado em estudos sobre violência contra a mulher, justamente para diferenciar os contextos presentes em cada um desses fenômenos. Assim, a partir dos aspectos relacionais dos conflitos de gênero e da representação dos papeis de homens e mulheres em cenas de violência dentro do casamento, serão apontados alguns detalhes encontrados neste cenário, tomando como base a pesquisa descrita no artigo “Representações de papeis de gênero na violência conjugal em inquéritos policiais”, de Lúcia Freitas.
É importante ressaltar, acima de tudo, que o intuito primordial é de contribuir para a área de estudos da relação de gênero e violência, assim como prover um material essencial e resultados que, através da reflexão, auxiliem e pautem a ação de diversas pessoas que trabalham nesta área. Além disso, como a própria autora diz, também traz ao público "uma realidade acessível apenas a alguns operadores do direito, muitas vezes eles próprios, cegos para a questão que é ofuscada em meio a um emaranhado de ações judiciais." Assim, com 20 processos penais referentes aos anos de 2007 e 2008, escolhidos aleatoriamente e que compreendiam ameaça e lesão corporal, enquadrados na Lei Maria da Penha, nos quais vítimas e agressores tinham relações de conjugalidade, a pesquisa analisou o discurso, através da técnica de Análise de Discurso Crítica (ADC). A região escolhida foi a cidade de Jaraguá, no interior de Goiás, pois, além de ser a área de atuação de Freitas, também serve para fornecer mais dados relativos à realidade encontrada em cidades do interior em geral, visto que a grande parte das pesquisas tem como base o que é visto em capitais. Sendo o inquérito policial um conjunto de atos investigatórios realizados pela polícia, de modo a tornar-se um instrumento formal contendo diversas provas que sustentam uma ação penal, tem-se aí uma fonte bastante ampla pana análises e descobertas no campo jurídico, no que diz respeito à violência conjugal. Tais provas podem ser objetivas e materiais, como são comumente vistas; mas podem também ser subjetivas, transmitindo dados através de pessoas que participaram direta ou indiretamente dos acontecimentos. Tendo isso em mente, este último tipo de "prova" é o mais valioso para compreender o fenômeno que pretende ser estudado, pois é através das pessoas, seus pensamentos, ações e motivações que a violência é perpetuada. Como característica da ADC, a linguagem é vista como prática social, portanto, considera o contexto, assim como fatores como poder, discriminação e controle, dentro de um cenário ideológico cultural, para realizar uma análise crítica daquilo que é expressado. Em alguns inquéritos analisados, notamos o relato como sendo uma conversa que iniciou o conflito, sendo que a mulher permanece no “papel de dizente” (que pratica ações apenas orais), reforçando um lugar de passividade. A partir disso, pode-se até notar um começo de revide da esposa, mas logo se detectam estratégias que tiram de foco a agência agressiva da mulher. Não obstante, o relato do homem traz uma característica que ameniza a violência apresentada. Conforme informa Freitas, essa aparente minimização da violência é algo bastante presente em diversos estudos na área. Como pontua a autora, existe essa tendência de “focalizar o conflito entre parceiros de forma isolada, realçando suas oposições e não o que os une, sem ser considerada a tensão existente entre os dois e sua respectiva singularidade.” Mesmo considerados em “lados” diferentes, o agressor e a vítima repetem falas já vistas antes. Para eles, ideias de transferem a responsabilidade de ação para as vítimas é algo comumente encontrado, levando a entender que as marcas da agressão foram causadas pelas próprias mulheres, em alguma situação de descontrole. Também o relato transcrito da fala deles deixa uma certa tendenciosidade aparecer, como isentando-se ação realizada. Num exemplo “o declarante alega que houve um empurrão em X”, a representação do conflito torna o empurrão (logicamente um ato material) como algo existencial, perdendo materialidade e ausentando o autor da cena, pois não há, explicitamente, alguém que cometeu a ação de empurrar. Apenas “houve um empurrão”. Não obstante, na análise do discurso das mulheres, deve-se tomar cuidado com o risco de apresentar uma visão vitimista, na qual elas são tratadas pelo viés da passividade e imobilismo. Não é necessário confirmar que, geralmente, nas relações conjugais, as mulheres compõem a parte mais afetada nestes casos, mas também não se pode negar a existência de uma violência que é perpetrada por elas também, principalmente a nível verbal. Enquanto xingamentos de caráter sexual ativo são proferidos contra elas, quaisquer tipos de comentários provocativos que negam a masculinidade deles configuram-se como extremamente ofensivos. Há mais de um fator que perpassa a situação, mas nota-se aí um certo traço da própria relação conjugal que tem como fator presencial a agressividade entre o casal. Entretanto, a quantidade de processos torna evidente que a mulher é o ser mais vulnerável, até mesmo pela ideologia até hoje pregada. A violência encontrada nos casos analisados vai além da física, pois denota uma ação simbólica em que os danos morais e psicológicos, muitas vezes, são mais graves que os visíveis. Com apenas alguns recortes do que foi a pesquisa, através desse estudo, então, percebe-se uma certa padronização dos discursos, sendo que há uma sequência regular e temporalmente previsível, mostrando um fluxo comunicativo característico do grupo de origem. Os indivíduos envolvidos conferem à violência significados bem específicos, sempre dentro de um parâmetro relacional que faz com que se sintam em condições desiguais, ainda mantidas na sociedade, onde o prejuízo tende para o lado das mulheres. Desse modo, os resultados da análise que pretendia verificar a violência nas relações de gênero, mostraram uma realidade social, a partir de falas de um sistema que é o mesmo que tem capacidade de combater essa mesma situação. Da mesma forma que apareceram valores culturais definidores dos papeis de gênero, são esses tradicionais papeis que dão sentido ao fenômeno, que existem de maneira a promover uma prerrogativa para o próprio ciclo da violência conjugal. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS FREITAS, L.. REPRESENTAÇÕES DE PAPEIS DE GÊNERO NA VIOLÊNCIA CONJUGAL EM INQUÉRITOS POLICIAIS. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, Vol. 12, N. 1, jul. 2011. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/3968/3355>. Acesso em: 10 Dez. 2017. Comments are closed.
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