Artigo de Clara Agnes Araujo Oliveira no sala de aula criminal, sobre o filme ''Milagre na cela 7'' refletindo sobre o uso da tortura para obtenção de confissão, vale a leitura! ''Diante a adoção da tipificação pelo ordenamento jurídico, o País vem buscando combater essa prática criminosa e, seguindo os pressupostos do artigo 1º da Convenção da ONU, a Lei nº 9.455/97 é constitucional e mais benéfica à vítima, dado que, não sendo considerado um crime próprio, ou seja, pode ser cometido por qualquer pessoa e não apenas por funcionários públicos, acaba sendo mais abrangente, possuindo mais eficácia e efetividade ao punir o criminoso, bem como, prevalecendo em caso de possível conflito frente à Convenção Interamericana (FELICIO, 1999)''. Por Clara Agnes Araujo Oliveira Devemos seguir alguns passos primordiais, inicialmente, para nos inserirmos ao estudo do Direito e das artes em geral. O entusiasmo ao retratar o tema escolhido é essencial, ora que, muitas vezes, vamos nos encontrar em situações que deveremos analisar e reanalisar as obras, com a intenção de avaliarmos o meio artístico por um olhar mais jurídico e isto, jamais poderá ser um problema.
Não menos importante, é recomendado examinar as categorias das obras que estabeleçam esse diálogo entre as disciplinas afins, almejando o encontro de ideias, mesmo que de âmbitos diferentes. O referido tema abrange uma área que tem o seu próprio recorte epistemológico, que cresce exponencialmente, estabelecendo um diálogo interdisciplinar, unindo a teoria jurídica com a teoria das artes. Utilizar o cinema como um instrumento de encantamento faz-se necessário, já que são várias possibilidades dessa abordagem no âmbito do direito, desde a narrativa, às exemplificações. Valter Hugo Mãe (2015) diz que “é preciso viver encantado” e isso vale muito para o campo do direito, principalmente o penal. Os julgamentos marcam as pessoas, existe toda uma questão emocional e, com o tempo, verifica-se uma tendência a nos anestesiarmos com algumas informações, devido a própria dogmática e a formalidade, evidentemente necessária. Mas não podemos parar de enxergar a verdade, pois assim, entraríamos em uma cegueira coletiva. Para isto, existe a interdisciplinaridade, dado que o direito também é um âmbito essencialmente humano, com seu próprio saber, por isso devemos abordar de uma forma mais sensível e envolvente, a fim de ventilar o linguajar para que não seja meramente uma formalidade a ser cumprida. A temática escolhida é a narrativa turca chamada “Milagre na Cela 7” (2019), que transita em torno de um protagonista, Memo, claramente inimputável, ou seja, incapaz de entender o caráter ilícito dos fatos, acusado equivocadamente por homicídio de uma criança, filha de um tenente-coronel. A partir disso, o personagem principal é torturado por agentes públicos e forçado a confessar o crime, sem o direito à ampla defesa e o devido processo legal, cena esta que será aprofundada no presente artigo pela perspectiva da legislação brasileira, o que acaba denunciando o regime militar vivido pela Turquia na época dos fatos, mas, vale ressaltar que, infelizmente, esta é uma realidade ainda presente em diversos países. No Brasil, até a adoção da Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997, que tipifica o crime de tortura, não havia em nossa legislação um conceito específico para a conduta, que atualmente possui o objetivo de proteger a integridade física e psíquica da pessoa humana, desta feita, trata-se de uma proteção à vida, que é bem jurídico tutelado pelo Direito (MONTEIRO, 2002). O crime de tortura é definido pela legislação brasileira da seguinte forma: Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos (BRASIL, 1997). Diante a adoção da tipificação pelo ordenamento jurídico, o País vem buscando combater essa prática criminosa e, seguindo os pressupostos do artigo 1º da Convenção da ONU, a Lei nº 9.455/97 é constitucional e mais benéfica à vítima, dado que, não sendo considerado um crime próprio, ou seja, pode ser cometido por qualquer pessoa e não apenas por funcionários públicos, acaba sendo mais abrangente, possuindo mais eficácia e efetividade ao punir o criminoso, bem como, prevalecendo em caso de possível conflito frente à Convenção Interamericana (FELICIO, 1999). Porém, vê-se a dificuldade em perceber a tamanha gravidade do crime quando cometido por funcionários públicos e, ainda, percebe-se que são poucos os casos nos quais aplicam-se a referida legislação, pois, mesmo havendo o constrangimento com emprego de violência ou grave ameaça, grande parte das condutas não estão ligadas às circunstâncias elementares necessárias para a tipificação como tortura. No filme “Milagre na Cela 7”, logo nos primeiros dezoito minutos do enredo, Memo é cruelmente violentado e constrangido por diversos policiais, incluindo o tenente-coronel, que poderia evitar que o personagem principal fosse torturado pelos agentes de segurança, contudo, permaneceu inerte. O protagonista e vítima ainda é submetido e forçado por aqueles que detêm a sua guarda, a assinar com a própria digital sua confissão como culpado do acidente de uma criança. A vítima não resiste ou sequer pede auxílio por, justamente, não entender a situação, seu desenvolvimento mental é incompleto, conforme retratado no filme, ele apenas se vê diante de todo aquele intenso sofrimento físico e psicológico, resultado das práticas torturantes cometidas por aqueles que possuem o dever de proteger a sociedade. E, mesmo se houvesse alegação que o personagem estava submetido a medida de segurança por meio da prisão até que fosse investigada a situação, o constrangimento sofrido é injustificável e punível criminalmente, já que, conforme dispõe o art. 5º, III e XLIX, da Constituição da República, todos merecem ter a integridade física e dignidade asseguradas, limitando a penalidade apenas quanto a privação da liberdade (CAPEZ, 2007). Os direitos fundamentais são direitos históricos, bem como, um conjunto de prerrogativas que buscam proteger e garantir a dignidade humana, sem nenhuma distinção de raça, sexo, língua ou religião. Aplica-se a todos, indiscriminadamente. Os titulares são todos os humanos, bastando nascer/ser gerado. Nesse sentido, José Ribeiro Borges (2004) descreve bem o que é o sofrimento, reproduzido na respectiva cena: Sofrimento físico importa a contração muscular decorrente do uso de meios físicos, mecânicos, elétricos etc., provocando sensações desconfortáveis como a de mal- estar e de dor, alterando muitas vezes o funcionamento regular do organismo e mesmo do psiquismo; sensação decorrente da transmissão de estímulos para células nervosas do cérebro (córtex cerebral), referente à região afetada [...] o sofrimento moral pode ocorrer mediante a utilização de técnicas psicológicas, como a simulação de execução, a exposição continua a ruídos ensurdecedores (tortura acústica), privação do sono, a perda da liberdade em recintos de confinamentos, etc. Diante do retratado, cabe salientar que dentro das causas de aumento de pena estão: se o crime for cometido por agente público e se o crime for cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente, dispostas no §4º, da Lei nº 9.455/97, ou seja, os autores do crime, estando no posto de agentes públicos e conhecendo a deficiência do personagem, poderiam responder pela forma qualificada, crime este inafiançável e insuscetível de graça ou anistia no Brasil. A tortura é uma metodologia muita antiga, observada na inquisição, por exemplo, quando se torturavam hereges e, principalmente, mulheres, para retirar suas confissões, pela justificativa de solucionar diversos crimes como sendo os de “sedução” ou alegar bruxarias, justificando que elas eram capazes de provocar tempestades que destruíram plantações, portanto, deveriam confessar e serem devidamente punidas. Nesse sentido, Iverson Kech Ferreira (2017) disserta: (...) é da inquisição considerada santa por suas raízes, a difusão da tortura como obtenção de provas fáticas que venham a validar a autoria de algum ilícito. Por meio dos ordálios, conhecidos como Juízos de Deus, interpretava-se o juízo divino e por intermédio deste reconhecia-se a inocência ou heresia do sujeito. Nota-se que tais flagelos eram dolorosos e causavam agonia extrema. A confissão também poderia ser extorquida por base da força e do apelo que a dor causa ao corpo fustigado, de forma a ser aceita como mais um mecanismo para a obtenção da culpa. Inúmeras formas de torturar o corpo foram pensadas e postas em pratica, determinando a possibilidade de obter-se a verdade, causando dores excruciantes em aparelhos criados para este fim. Após os ordálios, houve um recrudescimento do processo penal e uma escuridão ficou marcada pela possibilidade da utilização de mecanismos que pudessem auxiliar na obtenção de provas. O fato é que a inquisição deixou seus rastros que podem ser vistos até nos dias de hoje. O filme “Milagre na Cela 7”, em referência à cena aqui discutida, busca abordar o sistema institucionalizado que ainda utiliza desses meios para conseguir uma confissão, desmascarando essa realidade que deve ser amplamente combatida, advertindo-nos que devemos lidar com isto de uma forma muito crítica, pois o Direito é um grande instrumento de poder, já que transforma a concepção do que é certo em uma lei, no entanto, muitos podem aproveitar-se do seu respectivo cargo hierárquico para cometer atrocidades, como a tortura, contra os demais. A falta de efetividade da lei e das políticas públicas existentes é evidente. Possuímos uma legislação bem escrita, mas não damos conta do funcionamento desta e, considerando que a violência é um problema mundial, anexado ao fato que ela pode ser silenciosa e/ou silenciada, o perigo é ainda maior. A única maneira de combater este mal é por meio do preparo das Instituições e de seus funcionários, como policiais e demais servidores que detêm da função de proteção social, reavendo a humanidade perdida, que muitas vezes é extinta devido ao condicionamento do próprio ambiente de trabalho ser hostil, bem como, deixar de seguir modelos “ditatoriais” pré-estabelecidos que são adotados pelo sistema penal, mesmo que indiretamente, também seria uma solução viável, a fim de romper e modificar a atual estrutura judiciária. Clara Agnes Araujo Oliveira Acadêmica do curso de Bacharelado em Direito, no Centro Universitário Internacional (UNINTER); integrante do Grupo de Estudos dos Direitos das Mulheres da referida Instituição (2020). Endereço eletrônico: [email protected]. REFERÊNCIAS BORGES, José Ribeiro. Tortura: aspectos históricos e jurídicos: o crime da tortura na legislação brasileira: análise da lei n.9.455/97. Campinas, SP: Romana, p.171. 2004. BRASIL. Código Penal. Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 06 nov. 2020. ______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 06 nov. 2020. ______. Lei Federal n.º 9.455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm#:~:text=Define%20os%20crimes%20de%20tortura,Art.>. Acesso em: 06 nov. 2020. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 4 v., 2007. FELICIO, Érick V. Micheletti. Crime de tortura e a ilusória inconstitucionalidade da Lei 9455/97. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1000>. Acesso em: 06 nov. 2020. FERREIRA, Iverson Kech. O sistema da tortura institucionalizada. Sala de Aula Criminal. 2017. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-sistema-da-tortura-institucionalizada>. Acesso em: 06 nov. 2020. HUGO MÃE, V. As mais belas coisas do mundo. Contos de cães e maus lobos. Porto: Porto Editora, 2015. MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes Hediondos: Texto, comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 2002. MUCIZE 7. Koğuştaki. Direção de Mehmet Ada Öztekin. Turquia: Motion Content Group Lanistar Medya. 2019. (132 min). OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Sistema_inter/texto/texto_5.html>. Acesso em 06 nov. 2020. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 06 nov. 2020. SILVA, Cleuton Barrachi. A Pouca Aplicação da Lei de Tortura. SEDEP. Disponível em < http://www.sedep.com.br/artigos/pouca-aplicacao-da-lei-de-tortura/>. Acesso em: 06 nov. 2020.
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