Invoco hoje um clássico do terror cult dos anos 80 para fazer a intersecção da literatura com o direito.Quem nunca assitiu “Hellraiser”, uma franquia que continua ganhando sequências no cinema até atualmente? Criado por Clive Barker, “Hellraiser” é um tanto quanto peculiar. Para os fãs de terror, as histórias envolvendo “Pinhead” (o líder dos Cenobitas – aquele ser careca cheio de pregos cravados em toda a cabeça) são um deleite. Já para quem não gosta de histórias do tipo, é bom se manter distante, pois as cenas (descritas nos livros ou encenadas nos filmes) podem chocar. Enfim, o que importa para o presente texto é a forma como se dá a “ligação” entre os mundos: o nosso mundo e o mundo em que vivem os Cenobitas. Contextualizando para um dualismo clássico (a fim de alcançar quem eventualmente não conheça a série“Hellraiser”), os Cenobitas seriam os vilões que causam sofrimento aos ingênuos ou ambiciosos que ousam romper as barreiras entre os mundos através de um cubo com propriedades “mágicas”. Para ficar ainda mais compreensível: o cubo de “Hellraiser” funciona mais ou menos como uma caixa de pandora. Ali estão todos os males do mundo. As consequências vêm após a ousadia de alguém decifrar o objeto. Tomemos então, para o fim proposta da coluna “Direito Penal & Literatura”, o cubo de “Hellraiser” como sendo o poder político, ou até mesmo o próprio Estado. Os Cenobitas seriam o Direito Penal (dito de forma prática, com todos os males que dele resultam). O cubo contém os Cenobitas, limitando o campo e poder de atuação destes. O cubo, na verdade, quer ser encontrado e ter o seu segredo desvendado a fim de que possa liberar os Cenobitas e causar terror na terra. Enquanto é um instrumento de contenção, serve ao mesmo tempo (sendo essa a sua maior intenção – uma verdade não dita, entretanto) como meio para propagar o próprio poder. Enquanto se apresenta de uma forma interessante, chamativa, que arrebata corações, o cubo galanteia os incautos e os ambiciosos, fazendo com que os próprios que sofrerão posteriormente clamem pela libertação dos Cenobitas. Com o Estado e o Direito Penal não é muito diferente. Ora, o Estado (o cubo de “Hellraiser”), dentre suas diversas funções, existe para conter e limitar o poder – de terceiros e o próprio. Dentre as manifestações de poder, tem-se o Direito Penal (os Cenobitas). O aspecto destrutivo do Direito Penal, suas mazelas, suas consequências, enfim, os seus males, são notórios. Digo aqui num caráter empírico (visualizando os seus efeitos na prática), ou seja, crítico, tal qual é o formato do “Sala de Aula Criminal”. Basta ler e acompanhar os diversos e excelentes textos que se encontram no site para encontrar diversos exemplos pontuais do que se expõe em tal sentido. Mas sigamos os Cenobitas personificados no Direito Penal. Tal qual os malditosseres do outro mundo, o Direito Penal somente aparece cada vez mais forte quando é convocado. E o poder deste aumenta, consequentemente, cada vez mais de acordo com quanto mais se é clamado. E é justamente o que se vê. Grande parcela da população pedindo cada vez mais que o Direito Penal se faça presente e demonstre todo o seu poderio. Implacável, como dizem que deve ser. E na sociedade há quem assim clame sendo ingênuo ou até mesmo ardiloso, tal qual aqueles que buscaram e resolveram o enigma do cubo em “Helraiser”. Alguns sabiam dos monstros que seriam libertados e mesmo assim seguiram em frente. Outros acharam que estavam no caminho certo e só se deram conta depois que o cubo se abriu. Em nosso mundo, muitos continuam insistindo em abrir o cubo, por meio de discursos punitivistas enquanto cobram do Estado uma política de “tolerância zero”, a fim de libertar os monstros, a saber, um Direito Penal implacável, que puna, que cause dor e sofrimento. Pior, hoje vemos alguns agindo como fossem os próprios Cenobitas – não mais querendo depender do cubo, a saber, quando resolvem fazer a “justiça” (mas que justiça?) com as próprias mãos. Atentemo-nos. Lembremos sempre que uma das funções do cubo em “Hellraiser” era a de conter os Cenobitas. Uma forma de limitar o próprio poder que se situava no interior do objeto. Um exercício de autocontenção. Mas uma das formas de liberar esse poder era seduzindo as pessoas para que estas próprias pedissem e fizessem de tudo para ver o poder sem amarras, libertando assim os monstros e alcançando aquilo que buscavam. Ilustremos isso com o que se passa atualmente. Muitos clamam ao Estado para que liberte o seu poder punitivo por meio de políticas repressivas – daí o Direito Penal cada vez maior. Mal se dão conta de que os Cenobitas acabavam atingindo também o seu libertador. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BARKER, Clive. Hellraiser: renascido do inferno.Rio de Janeiro: Darkside Books, 2015
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