Quando são levantadas críticas ao modelo de justiça criminal em vigor, o critério usualmente eleito para contrapor o ser ao dever-ser e indicar a perda de legitimidade e irracionalidade presentes se voltam ao conceito de Estado Democrático de Direito.
É possível que a dificuldade em se obter um avanço da discussão acerca da criação de políticas públicas voltadas a fazer frente ao cenário desumano e caótico que o sistema penal impõe, tenha que ver, entre outras razões, com a degradação deste conceito. Para compreender a seriedade desta constatação, pensemos numa situação afastada do campo do direito. Imagine-se um pedreiro diligente, caprichoso, metódico, a construir uma casa. Em seu rigor metodológico, utiliza-se sempre de um mesmo balde para aferir a quantidade de areia, cimento e pedra que serão utilizados na mistura para o concreto. Ao confeccionar a massa para o reboco, filtra a areia diversas vezes, removendo toda sorte de impureza. Preocupa-se com desperdícios e com o padrão dos espaços entre os tijolos assentados. A cada metro quadrado edificado, lança mão do prumo[1] para verificar a simetria do trabalho realizado. Imagine-se agora a surpresa e frustação deste profissional ao constatar, utilizando-se agora de um nível[2], que as paredes levantadas apresentam defeito. Estão tortas. Indignado, pergunta-se sobre a causa do problema, questionando-se, inclusive, sobre sua habilidade. Porém, ao fazer uma inspeção cuidadosa, descobre que o problema não tem que ver com sua maestria, mas com um defeito no prumo que estava utilizando. A despeito de toda seu cuidado e destreza, era inevitável que o problema ocorresse, uma vez que o instrumento que lhe servia de critério de aferição para precisão ou justeza do resultado estava viciado. O que foi acima descrito ilustra, com algum acerto, o problema enfrentado ao se utilizar as características fundamentais do Estado Democrático de Direito como critério de legitimidade ou racionalidade do sistema de justiça criminal em vigor. O conceito padece hoje de contornos bem definidos, permitindo seu uso retórico dentro de uma amplitude tão vasta, que muitas vezes acaba sendo utilizado com efeito diametralmente contrário, ou seja, para o reforço do poder punitivo e religitimação de sua desigualdade e violência. Exemplo claro deste diagnóstico são os cínicos enunciados de “garantismo integral” ou “proibição de proteção insuficiente”, desconectados de suas raízes, para servir de justificativa à expansão do controle penal. Não se quer dizer com isso que, numa democracia, não possa haver os que defendam a expansão do poder de punir. O que parece incoerente e ilegítimo, porém, é fazê-lo através de uma distorção de teorias e discursos que visavam, no propósito declarado de suas hipóteses e proposições originais, exatamente algo diverso. Assim, é preciso, de duas, uma: ou resgata-se a noção de que o Estado Democrático de Direito se pauta pelo propósito claro de restrição ao arbítrio e contenção do poder punitivo ou será preciso trabalhar com critérios diversos, provavelmente ainda não cunhados com uma margem mínima de estabilidade comunicativa. Significa dizer que a noção de pós-democracia, de quem tem falado, em nosso país, por exemplo, Rubens Casara, precisaria ser assumida com o fito de se construir em torno diretivas que permitam atingir os fins que a “Democracia de Direito” (contida no Rule of Law, mas não reduzida a este significante) parece não ter conseguido alcançar, ao menos em países marginais como o Brasil. Se esta conclusão estiver, mesmo que parcialmente, correta, a tarefa com a qual se confrontam os pesquisadores das ciências sociais é hercúlea. Basta ver o esforço extenuante que foi realizado para que o Estado Democrático de Direito fosse delineado e, ainda que em parte, tornado factível. Não se olvida que os conceitos, principalmente aqueles que se destinam a descrever o dever-ser social, pautados numa apreciação razoável do patamar civilizatório atingido em dado momento, concatenado com uma noção de ética mínima, voltada a concepção de dignidade humana, não são estáticos como um prumo. A conceituação do que deve ser um Estado Democrático de Direito vai se alterando, ou melhor, se adaptando às necessidades e tensões próprias de uma sociedade progressivamente global (não necessariamente plural, mas sob os efeitos do inarredável efeito globalizante do avanço da hegemonia de determinada forma de governamentalidade neoliberal) e conflitiva. Ocorre, porém, que é preciso admitir o ponto em que determinado significante perde sua capacidade de descrever com segurança os desideratos acima, não mais se adequando como ferramenta para crítica do sistema de justiça criminal, sob pena de se tentar fazer esta com base em critérios sem capacidade mínima de constrangimento. Opera-se uma crítica vazia, meramente estética ou discursiva. Em razão disso, a busca por novos “padrões de medição” parece urgente. No final das contas, nos vemos diante da seguinte questão: com o que compararemos o sistema de justiça criminal vigente, ou sob que elementos apontaremos sua irracionalidade e violência a ponto de causar em nossos interlocutores a captação de sentido daquilo que pretendemos denunciar? A cada dia que passa, lançar mão do conceito de Estado Democrático de Direito, ainda que extremamente relevante e necessário, parece ser insuficiente. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Advogado [1] O prumo é um instrumento para detectar ou conferir a vertical do lugar e elevar o ponto. Ele pode ser adaptado a um prisma ortogonal ou um tripé. Sua utilização é obrigatória na construção civil, servindo para para determinar a direção vertical precisa. [2] O nível é muito utilizado na construção civil para medir inclinações. O nível de bolha é um dos mais comuns, pois permite a aferição por meio de um recipiente cilíndrico com um líquido dentro e uma bolha de ar fixo. Comments are closed.
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