Artigo do colunista Khalil Vieira Proença Aquim no sala de aula criminal, abordando o importante tema do autoritarismo no processo penal, observado o caso de repercussão nacional da Boate Kiss, vale a leitura! ''Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório. Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss''. Por Khalil Vieira Proença Aquim No dia 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5. O ato foi o mais severo de todo o regime militar, conferindo poderes de exceção ao Presidente da República, que poderia agir “sem as limitações previstas na Constituição”[1], suspender direitos e restringir liberdades individuais sendo “defesa sua apreciação pelo Poder Judiciário”[2], demitir, remover ou aposentar funcionários públicos, porquanto suspensa estabilidade constitucional[3] e decretar estado de sítio[4].
Ainda, e pelo único período da história nacional, foi determinado no art. 10 do Ato Institucional a suspensão da garantia do habeas corpus nos crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular. O Ato vigorou até a promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em outubro de 1978, que revogou os Atos Institucionais que contrariassem a Constituição. Exatamente uma década depois, em 1988, promulgou-se a vigente Constituição Cidadã, consagrando em seu segundo título direitos e garantias fundamentais, dentre os quais se insere a concessão de habeas corpus (art. 5º, LXVIII). Direito que, passadas cinco décadas do AI-5, vê-se novamente em risco de mitigação. Na última semana, noticiou-se amplamente o julgamento de quatro acusados de terem agido com suposto dolo eventual na trágica fatalidade que vitimou centenas de pessoas na boate Kiss, em Santa Maria/RS. Ao final, foram os quatro condenados, tendo o juiz presidente decretado a execução imediata da pena privativa de liberdade, nos termos do art. 492, I, e, CPP. Uma das defesas, porém, havia impetrado writ preventivo de habeas corpus, tendo obtido decisão liminar do TJRS impedindo a execução provisória da pena. Em face disso, no dia 13 de dezembro, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, em grave deturpação de seu papel institucional, sem interpor sequer agravo interno, como pontuou Alberto Zacharias Toron[5], não aguardou o julgamento de mérito do writ nem encaminhou qualquer medida ao Superior Tribunal de Justiça (instância imediatamente superior), mas dirigiu-se diretamente ao Supremo Tribunal Federal protocolando pedido de Suspensão de Liminar (SL 1504 MC). O fundamento buscado para tanto teve por base o art. 297 do Regimento Interno do STF e o art. 4º da Lei nº 8.437/92 - cuja redação expressa aponta a possibilidade de suspensão de execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes. Cita como precedentes a SL 453 MC, a SL 787 e a SL 1395. Necessário, portanto, um breve distinguishing dos casos mencionados. A SL 453 MC, de relatoria do Min. Cezar Peluso, foi julgada em 2010, e tinha por objeto a suspensão de ordem liminar de habeas corpus deferida para que o paciente, condenado, retornasse à unidade prisional onde cumpria inicialmente a pena: “Requer o Estado do Rio de Janeiro, em síntese, que o réu cumpra o restante da pena privativa de liberdade em presídio federal de segurança máxima (Mossoró), alega que seu retorno aos presídios do Rio de Janeiro causará irreparável lesão à ordem e à segurança pública.” A SL 787, por sua vez, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, foi julgada em 2014, e tinha por objeto a suspensão de ordens liminares de habeas corpus deferidas que versavam sobre a alteração das posições cênicas dos plenários de júri no Rio Grande do Sul: “Por essa razão, argumenta, ajuizou a presente suspensão de liminar sustentando: a) impropriedade do habeas corpus para o questionamento da disposição cênica do plenário do Tribunal do Júri, haja vista que a tutela pretendida no caso não se refere à liberdade de locomoção; b) violação ao enunciado da Súmula Vinculante 10, pois as decisões proferidas pelo TJRS afastaram a incidência de dispositivos da Lei Orgânica do Ministério Público, mesmo sem haver declaração expressa de inconstitucionalidade; e c) lesão à ordem e à segurança públicas em decorrência do cancelamento sucessivo de sessões de julgamento, o que ocasionou o prolongamento indefinido/“eternizando” a existência de inúmeros processos.” Ambos os casos, em que pese sejam igualmente pedidos de suspensão de liminar em habeas corpus, tem no objeto do mandamus original um ponto específico: atos do poder público. No primeiro, o estabelecimento (federal ou estadual) para o prosseguimento da execução penal. No segundo, a reestruturação cênica dos plenários do Tribunal do Júri. Nenhuma versava diretamente sobre cerceamento imediato do direito de ir e vir. Situação distinta do que ocorreu na SL 1395, julgada em 2020 pelo próprio min. Luiz Fux. Ali, a partir de pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República, pugnava-se pela suspensão de ordem liminar em habeas corpus concedido pelo Min. Marco Aurélio ao paciente alcunhado “André do Rap”, supostamente líder de uma das maiores organizações criminosas do país. A discussão versava sobre se a ausência de revisão periódica da prisão preventiva, advinda com a Lei nº 13.964/19, implicaria ou não a revogação automática da prisão. Note-se que, em que pese versasse este último caso de habeas corpus liberatório, tampouco se assemelha ao caso da boate Kiss. A liminar cassada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal havia sido concedida por outro ministro da mesma Corte. Em que pese a discussão sobre a legitimidade de o presidente, monocraticamente, suspender decisão de outro ministro, distingue-se por completo do caso atual oriundo do TJRS, em que a postulação se deu per saltum. Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório. Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss. No mérito, fundamentou o órgão de acusação gaúcho nos votos - ainda em discussão - divulgados acerca do RE 1.235.340, nas decisões monocráticas proferidas nas ADIs 6735 e 6783, bem como em suposta ofensa do Desembargador atacado à cláusula de reserva de plenário, sendo necessário o respeito às decisões colegiadas do TJRS, e infirma violações à ordem e à segurança jurídica, à ordem social e à paz pública. Em menos de um dia, o min. Luiz Fux deferiu a suspensão da liminar pleiteada. Para fundamentar o conhecimento do pleito, fundamentou no art. 297 do Regimento Interno do STF, no art. 4º da Lei nº 8.437/92 e no art. 15 da Lei nº 12.016/09 (que versa sobre o mandado de segurança), bem como indicou como precedentes os seguintes julgados: SS 846 AgR, SS 5049 AgR, SL 1165 AgR, STA 782 AgR, SS 5112 AgR, STA 729 AgR e STA 152 AgR. Distinguishing novamente necessário: - A SS 846 AgR (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/05/1996) era em face de mandado de segurança, que versava sobre a equiparação e os vencimentos dos policiais civis e militares do Distrito Federal; - A SS 5049 Agr (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/10/2015) versava sobre ação reintegratória de posse que implicava na retirada de comunidade indígena em terras sob litígio; - A SL 1165 AgR (Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 13/02/2020) era sobre o distanciamento de veículos em corredores exclusivos de ônibus. Consignou o presidente que “é inadmissível, ademais, o uso da suspensão como sucedâneo recursal”; - A STA 782 AgR (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/02/2015) versava sobre determinação à Companhia Paulista de Força e Luz a realizar limpezas em áreas ocupadas; - A SS 5112 AgR (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 07/04/2017) tratava de discussão sobre pagamento de precatórios ao Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina; - A STA 729 AgR (Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22/10/2013) também tinha como parte o Instituto de Previdência de Santa Catarina, que discutia a constitucionalidade dos arts. 206, inc. VI, e 212, inc. I, da lei estadual 6.843/1986; - A STA 152 AgR (Rel. Min. Ellen Gracie, j. 10/03/2008), por fim, tinha por objeto suspensão de pagamento de taxa de limpeza pública. Importante assentar, mais uma vez, que nenhum dos precedentes apontados na decisão do min. Luiz Fux guarda qualquer similitude fática com o caso da boate Kiss. No mérito, trouxe à tona o entendimento assentado no ARE 964.246[6], bem como a nova redação do art. 492, §4º, CPP, afirmando que a decisão liminar atacada teria se dado “ao arrepio da lei e da jurisprudência”, e afirmou verificar “elevada culpabilidade em concreto dos réus”. Ocorre, porém, que o Supremo Tribunal Federal não tomou ainda decisão colegiada acerca da constitucionalidade da nova redação do art. 492 no tocante à execução imediata da pena. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem entendimento já pacífico em ambas as turmas que julgam matéria penal, e ambas no mesmo sentido: não se admite a execução antecipada da pena[7]. Em face da decisão, porém, se apresentaram voluntariamente os acusados para darem cumprimento à ordem de prisão. Um deles, ao arrepio da Súmula Vinculante nº 11 e da determinação expressa do magistrado de primeiro grau, foi algemado. Ao arrepio da Lei nº 13.869/18, foi exibido como troféu para a imprensa. Na tarde de quinta feira, 16/12, iniciou o julgamento do mérito do habeas corpus. Em sessão virtual, disponibilizaram-se dois votos, ambos pela concessão da ordem. Se um dos fundamentos do pleito ministerial era violação ao princípio da colegialidade, agora tal argumento já cairia por terra. No entanto, em face disso, o órgão acusador do Rio Grande do Sul protocolou nova petição, nos mesmo autos de SL 1504 MC: em vista da provável concessão da ordem, requereu a concessão de provimento preventivo a fim de impedir eventual concessão de Habeas Corpus pelo TJRS, afirmando que o decreto prisional vigente seria de competência do STF. Para o espanto da comunidade jurídica, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido, para sustar os efeitos de eventual concessão de Habeas Corpus pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, até o trânsito em julgado da ação. O que se verifica é absolutamente estarrecedor. A uma, pela inaplicabilidade da Lei nº 8.437/92 a processos criminais, eis que versa expressamente sobre atos do poder público. A duas, pela impossibilidade de conhecimento de pedido formulado per saltum, desrespeitando o trâmite recursal ordinário. A três, pela absoluta discrepância entre os precedentes citados e o caso concreto. A quatro, pela impossibilidade de execução imediata da pena, nos termos do decidido nas ADCs 43, 44 e 54, bem como na recente jurisprudência pacífica do STJ. A cinco, pela grave violação às garantias constitucionais de presunção de inocência e devido processo legal. A seis, pela constatação de um arbitrário poder monocrático, exercido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, contra o qual o Plenário da Corte deve se insurgir. Em 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5, que permitia ao Presidente da República exercer seus poderes “sem as limitações previstas na Constituição”, bem como suspendia a ordem de habeas corpus. Em 13 de dezembro de 2021 o Ministério Público do Rio Grande do Sul protocolou pedido que escancarou uma atuação do Presidente do STF fora das limitações previstas na Constituição, e suspendendo ordem futura de habeas corpus. A potencialização exponencial dos poderes monocráticos dos ministros ultrapassou todos os limites admissíveis ao Estado Democrático de Direito. Uma revisão urge. Por mais nobres que pudessem ser as intenções individuais, são absolutamente incompatíveis com a democracia. Por enquanto, a cada dia se torna mais necessário responder à indagação da sexta sátira de Juvenal: quis custodiet ipsos custodes? Khalil Vieira Proença Aquim Advogado criminalista Professor de direito penal da faculdade inspirar Especialista em direito penal e processual penal Membro do conselho estadual da associação paranaense dos advogados criminalistas (Apacrimi) Ex presidente da comissão de advogados iniciantes OAB PR (2016/2018). NOTAS: [1] Artigos 2º, 3º e 4º. [2] Art. 5º. [3] Art. 6º. [4] Art. 7º. [5] https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/alberto-toron-justica-todos-boate-kiss [6] Julgado em 2016, e cujo entendimento foi superado pelo superveniente julgamento das ADCs 43, 44 e 54. [7] https://www.conjur.com.br/2021-nov-13/tribunal-juri-execucao-provisoria-pena-tribunal-juri
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