Várias discussões pertinentes se têm visto num interessante fenômeno de reflexão e maior compreensão da realidade que se constitui numa peculiar película. Diz-se aqui do filme “O Poço”, que logo após o seu lançamento cativou o público como poucas obras conseguem fazer. Mesmo sendo um filme que choca, que causa náuseas, que chacoalha o âmago do íntimo daqueles que o assistem com a devida atenção, sua repercussão foi estonteante, passando a estar presente em diversos debates de várias áreas do saber. Talvez justamente pelo seu impacto brutal é que obteve êxito em chamar a atenção para as questões de fundo que são discutidas no filme. Para além dos elementos fortes presentes no filme que acarretam sensações desagradáveis, nojo e irresignação no espectador, uma das leituras possíveis da obra é olhá-la como uma grande alegoria da sociedade em que estamos situados. Nesse sentido, o aspecto visceral que se vê em “O Poço” está longe de ser algo que se situa no terreno do ficcional. Antes, trata-se de mera representação daquilo que nos ronda, do meio no qual estamos inseridos, incluindo-se aí aqueles atos que repugnamos como também as nossas próprias práticas que contribuem para a manutenção do status quo das coisas. O filme funciona assim como um espelho da nossa própria realidade. As abordagens possíveis a partir ou pelo filme são variadas. As interlocuções por diversas áreas do saber com “O Poço” possibilitam uma forma própria de compreensão da realidade. Daí a importância do ficcional, dentre tantas outras, no sentido de fazer com que os detalhes, aqueles importantíssimos que por vezes passam desapercebidos, que são trabalhados e expostos nas diversas manifestações artísticas existentes, deem luz aos detalhes que na realidade permanecem acobertados pela sombra dos nossos olhos que não enxergam – quando não fingem que não enxergam. Nesse sentido, o olhar da sociologia, da filosofia, da economia e inclusive do direito permitem uma leitura em conjunto sobre o filme, ensejando reflexões próprias que surgem dessa relação. É no campo do jurídico que o presente breve texto se propõe a expor um pequeno recorte comparativo da dinâmica do filme com uma das tantas mazelas que acometem a sociedade e repercutem no direito, qual seja: a pena de prisão. “O Poço”, que representa uma espécie de cárcere, mostra, de modo geral, uma estrutura na qual existem diversos andares, sendo que em cada um desses andares estão situadas duas pessoas. Há um grande vão bem no centro de cada andar pelo qual passa, todos os dias, uma plataforma (um tipo de elevador) repleto de comida. A plataforma sempre inicia no andar superior e desce andar por andar, permanecendo um certo tempo em cada um para permitir que as pessoas que ali estão possam comer. Na primeira parada, a mesa está farta e intocada. Na medida em que o elevador vai descendo, a comida consequentemente vai diminuindo até que cesse. A comida é ingerida pelos andares superiores, não se permitindo assim que as pessoas dos níveis inferiores tenham acesso a ela, ficando esses sem ter o que comer. Há uma classe, portanto, os de cima, privilegiados pela possibilidade de comer – bem e melhor. Na medida em que os níveis vão diminuindo, os privilégios vão se esgotando. Vão restando sobras, e sobras das sobras, e sobras das sobras das sobras, restos emporcalhados que são consumidos pelos últimos ainda felizardos por conseguirem comer algo. A maioria fica sem acesso ao mínimo para sobreviver. Não se pode deixar de mencionar que há uma constante alternância nas classes. Cada dupla fica um curto período em cada andar e depois, de maneira aleatória (talvez sob a regência da sorte), é deslocada para outro andar, o qual pode ser mais alto ou mais profundo. A mudança de andares se dá como numa verdadeira “roda da fortuna”, tal qual a cantada nos versos de Carmina Burana, consagrada na composição de Carl Orff: No trono da Sorte Eu sentara, elevado Coroado com as flores Multicoloridas da prosperidade Apesar de ter florescido Feliz e abençoado Agora do alto eu caio Privado de glória A roda da Sorte gira Eu desço, diminuído Outro é levado ao alto Lá no topo Senta-se o rei no ápice? Que ele tema a ruína! Pois sob o eixo lemos O nome da rainha Hécuba A única certeza que cada dupla tem é a de que o andar em que se encontram é meramente transitório, sendo que tudo pode melhorar ou piorar drasticamente. O que chama a atenção do protagonista, de nome Goreng, é a falta de solidariedade dos que estão acima, mesmo conscientes de que logo as posições irão se alternar. Guiado por uma visão idealista, Goreng passa a se esforçar para “mudar” o sistema, buscando que a comida chegue aos andares mais baixos, mas as coisas não funcionam exatamente como ele espera. Em um ambiente inóspito, a solidariedade não parece ser um valor em pauta e o ideal de Goreng – de forma contraditória – só acaba prevalecendo por meio da violência. Goreng passa a cometer, então, todo tipo de atrocidade para impor um tipo peculiar de “solidariedade”. O ideal de Goreng se perverte em tirania, seguindo a velha máxima de que “os fins justificam os meios”. Nada é simples e muito menos fácil de digerir nesta obra cinematográfica. Por mais que a mensagem de “O Poço” sirva como uma leitura da divisão social de toda a comunidade, observa-se que ela é tão rica em sua leitura da sociedade que se vê presente essa dinâmica em todo e qualquer âmbito do corpo social. Nos presídios, nas cadeias, no cárcere em geral, vê-se presente esse fenômeno de alguns terem acesso a certos privilégios enquanto outros não. Mesmo no ambiente em que supostamente os indivíduos errantes estão sendo neutralizados, a lógica dos privilégios de classe se faz presente. Quem tem mais sobrevive, quem não tem nada acaba sucumbindo. Para além disso, ainda que não se possa ter certeza se o Poço é exatamente uma prisão, na acepção da palavra, é possível fazer um comparativo entre o tratamento recebido pelos “hóspedes” do Poço e o que é conferido aos presos, nas penitenciárias lotadas, insalubres e distantes de qualquer resquício de dignidade. O que se quer ressaltar é que ninguém se torna virtuoso quando é tratado de forma desumana. Uma pessoa privada de alimento, de cuidados sanitários básicos e de dignidade, tal qual no Poço – e num sem número de estabelecimentos penitenciários brasileiros –, acaba se distanciando de qualquer virtuosidade. No Poço as pessoas parecem incapazes de expressar solidariedade. Ao contrário, alimentam sentimentos egoístas e revanchistas, projetando em desconhecidos o ódio pelo sofrimento que experimentaram. Eis aqui o problema essencial das prisões: pune-se com violência e humilhação as pessoas que lá estão e, ao mesmo tempo, “objetiva-se” que tais pessoas retornem do cárcere melhores do que lá entraram, virtuosas e afastadas do comportamento desviante. O Poço escancara a irracionalidade desta expectativa. É necessário repensar a punição. A agressão e a indignidade dentro dos presídios só retroalimenta a agressão e a indignidade em toda a sociedade. Não se atinge a solidariedade por meio do sofrimento. É algo básico. Contudo, na maioria das vezes, algo que deveria ser evidente, tem que ser jogado na nossa cara, como faz “O Poço”. Paulo Silas Taporosky Filho Mestre em Direito Professor de Direito Penal André Luís Pontarolli Mestre em Direito Professor de Direito Penal e Criminologia Comments are closed.
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