Talvez seja possível afirmarmos que a crença na positividade das leis seja uma das características determinantes de nossas sociedades ocidentais contemporâneas. Ou, dito de outro modo, associamos lei com justiça. A justiça é resultante da aplicabilidade da lei, como observou o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre a crença na justeza do cumprimento de procedimentos legais nos países com sistemas jurídicos de leis escritas (statute law). Tal percepção se expressa no imaginário popular diante de situações de violência contra a vida de outrem, ou contra a propriedade, ou outro fato violento qualquer que afronta a ordem social estabelecida, são expressões populares: “espero que se faça justiça”; “a única coisa que quero é justiça.”
Mas, a crença na positividade da lei transcende os anseios expressos pelo senso comum e, se materializa na estrutura jurídica que regulamenta em seus mínimos detalhes a vida, as relações sociais em que o indivíduo em sua cotidianidade se circunscreve. Estamos diante do fenômeno da juridicização da vida em sua totalidade. Multiplicam-se as leis com o intuito de afirmar direitos civis, políticos, sociais e individuais, de reparar injustiças sociais históricas. Tal aposta na positividade da lei pretende garantir a justa relação entre produtores e consumidores (Código de defesa do consumidor), os direitos do idoso (Estatuto do Idoso), da criança e do adolescente (ECA), o direito dos jovens, o (Estatuto da Juventude), apenas para citar alguns exemplos, mas há milhares de leis que em vigor como expressão dessa crença e necessidade contemporâneas de justiça e segurança. O filósofo italiano Giorgio Agamben (1942...), em suas reflexões em torno desta estrutura jurídica ocidental, chama atenção para as contradições inerentes à crença na positividade das leis. Neste artigo, abordaremos dois destes paradoxos no âmbito dos limites de um artigo de jornal. O primeiro paradoxo que se circunscreve no imaginário social contemporâneo é o fato de que quanto mais garantias legais, jurídicas buscamos, ou até mesmo exigimos, menor é a nossa liberdade de livre uso de nossas potencialidades racionais e políticas de alcançar acordos, consensos em torno de problemas e situações vivenciadas socialmente. Ou seja, abrimos mão da capacidade de que cada ser humano tem de fazer uso do bom senso, da capacidade de tolerância e, até mesmo do exercício da generosidade na resolução de questões cotidianas que envolvem os indivíduos. Ao transferirmos a resolução da quase totalidade das questões sociais em que estamos inseridos, abrimos mão de assumirmos o uso público e livre da razão, transferindo para a esfera transcendente do direito, crentes na garantia da justiça. O segundo paradoxo apontado por Agamben é que desconsideramos o fundamento ontológico da lei e, por extensão, da justiça. Para o filósofo, o fundamento ontológico da lei reside na violência originária da passagem da physis para o nomos. Ou seja, ao nos tornamos humanos somos inseridos na estrutura das relações sociais, cerceadora de nosso direito natural. É neste ato de violência originária, que suprime o direito de natureza de que cada existente é portador, que nos inserimos na esfera do mundo humano, da lei, do direito, da justiça. Ao incluir um conjunto de relações humanas e sociais, justificando-a juridicamente, a lei o faz excluindo potencialidades humanas que poderiam se estabelecer no livre curso dos acontecimentos. Esse fenômeno, chamado por Agamben de inclusão exclusiva, é uma troca, uma relação estabelecida sobre dois pressupostos. Em primeiro lugar, a inclusão gera a exclusão e a exclusão gera inclusão. Além disso, a inclusão e a exclusão só podem ser em algum lugar ou categoria, como centro ou periferia e cidadão ou apátrida, por exemplo. Uma consequência da inclusão exclusiva é a violência de incluir alguém que não queira ser incluído ou que não queira ser excluído. Portanto, para Agamben, o fundamento ontológico da justiça, da lei reside na violência. A crença na positividade da lei reside na desconsideração desta violência originária que fundamenta a justiça e, que ao incluir exclui a vida de outras potencialidades. Mas, o filósofo vai além e demonstra que é a violência originária que constitui o fundamento ontológico da lei, lhe permite justificar em determinadas situações societárias, atrocidades de toda ordem, a exemplo dos campos de concentração nazistas na segunda guerra mundial, a prisão de Guantanamo mantida pelos EUA após os atos terroristas de 2001, aos campos de refugiados espalhados mundo afora, de seres humanos deixados a própria sorte, desprovidos dos direitos impetrados pelas estruturas jurídicas estatais e internacionais ao longos dos últimos três séculos. Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina Professor Titular de Filosofia nos cursos de Graduação e no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado Luiz Eduardo Cani Mestrando em Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado Professor de Direito na Universidade do Contestado Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |