Clayton Lee foi condenado à morte por supostamente ter assassinado uma jornalista. Antes da execução da pena capital, Rolo Haynes, excêntrico diretor do Black Museum, um museu macabro de “artefatos criminológicos”, convence Clayton a ceder contratualmente o uso de sua consciência pós-morte, como forma de garantir sustento póstumo à família.
É neste cenário tétrico e futurista, típico de Black Mirror, que se desenrola o sexto episódio da quarta temporada da série britânica. Executada a pena de morte, a consciência de Clayton é “instalada” em um holograma e aprisionada em uma cela no Black Museum. Como principal atração do museu, Haynes recria, continuamente, a execução de Clayton através de uma cadeira elétrica simulada. Apesar de não ter um corpo vivo, a consciência de Clayton continua a vivenciar experiências sensoriais. A atração consiste no seguinte: os visitantes puxam a alavanca que aciona a cadeira elétrica e, por dez segundos, se divertem com a dor excruciante experimentada por Clayton. Os visitantes que passam pela experiência também ganham um suvenir com uma miniatura do holograma de Clayton em eterna agonia. Esta imagem futurista de Black Mirror remete de imediato ao passado, à exaltação medieval das execuções cruéis e dos suplícios, historiadas por Foucault (“Vigiar e Punir”) e mencionadas por Nietzsche em sua “Genealogia da Moral”, tais como “o esmagamento sob os pés dos cavalos, o esquartejar, o emprego do azeite ou do vinho para cozer o condenado, o fazer tiras do corpo, arrancar os peitos, o expor o malfeitor untado de mel sob um sol ardente às picadas das moscas” (NIETZSCHE: 2017; p.61). E por falar em Nietzsche, ao assistir ao episódio Black Museum, é impossível não lembrar as teorizações do filósofo sobre a crueldade dos castigos corporais nas mais variadas sociedades, caracterizando aquilo que ele denomina de “alegria de tiranizar”, como se a compensação por um crime residisse “na promessa e no direito de ser cruel” (NIETZSCHE: 2017; p. 64). E assim é no indigno sistema carcerário brasileiro. Sabe-se que a realidade está longe daquelas promessas não cumpridas da Lei de Execução Penal. Já falou o Judiciário inclusive, numa espécie de reconhecimento tardio do óbvio ululante, em “estado de coisas inconstitucional” (ADPF 347). Mas permanece o sorriso amarelo estampado em rostos hipócritas que continuam abarrotando o cárcere enquanto são criadas novas formas de insuflar o sistema (HC 126.292), ou seja, “continuamos a mandar pessoas para o suplício gótico. E queremos mais gente lá! Insaciavelmente assim desejamos” (CARVALHO: 2013; p. 83). Existiria nestes castigos antigos um prazer macabro associado à punição. “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda” (NIETZSCHE: 2017; p. 65). Toda crueldade justificada como reação, como ressentimento contra o criminoso, como se este perdesse a humanidade. Eis o vislumbre do inimigo, daquele contra quem tudo é possível.
Há, portanto, íntima conexão entre os visitantes imaginários do Black Museum e as platéias medievais dos atos de fé e das execuções públicas. Agora, fosse o prazer com a dor da punição alheia apenas resquício do passado ou componente de um futuro funesto, o presente poderia ser comemorado. Mas, não é o caso! O gozo com a punição alheia não constitui problema de uma época específica, mas, infelizmente, parece ser elemento ignóbil da condição humana, mais ou menos confessado, a depender dos ventos culturais. Se o acusador, o julgador, a sociedade, o que aponta o dedo, se excede quando o outro age de modo que mereça uma reprimenda (ou assim se estabeleça por consenso), o que dizer daquele que acredita naquela verdade conjecturada, portanto, construída pelo próprio? Poderia aqui se falar no sujeito solipsista – aquele que “assujeita o mundo conforme o seu ponto de vista interior” (STRECK: 2017; p. 273), que acaba por estabelecer, ou simplesmente seguir irrefletidamente, essas ditas verdades que, na realidade, tratam-se apenas de um reflexo daquela denunciada condição humana – clamando pela punição alheia. Mas de onde nasce essa necessidade de ser o algoz do início ao fim do procedimento da acusação? Sabe-se que o apenado já inicia o jogo como condenado mesmo quando ainda vigora o seu estado de inocência. Não se dá por conta, aquele que brada por punição, que na balança o sistema é muito mais pesado que o admoestado? A coisa é feita para que assim seja, por mais que se negue. Não importa. Até porque quem sofre é o outro. Os outros. Sempre eles, nunca nós. Cegos pela viseira da fábula da verdade, acabamos por desconsiderar muitas vezes fatores importantes, passando por hipóteses que não são lógicas, atropelando-se o direito de ouvir o outro e considerar aquilo que é dito. O que deveria ocorrer é o ouvir a si próprio, mas na perspectiva do outro para também se sentir o desespero, o medo, o nojo, a ânsia, a raiva e a confusão que se gera. Os detentores do “senso comum” normalmente clamam por prisões fétidas, insalubres e redutoras da dignidade humana; gritam por penas mais cruéis e enchem a boca para professar que “bandido bom é bandido morto”; comemoram, em êxtase, a prisão alheia e demonstram contentamento diante de linchamentos. É por isso que, com razão, pode se dizer que a óbvia conclusão que se extrai dessa lógica que norteia a punição que visa o aniquilamento, aquela reprimenda que é dita justa por ser racionalizada e imposta pelo Estado, que é estabelecida e posta em prática pelos homens “bons” contra os homens “maus”, é que o que se quer é “punir mais e mais e mais, o que é visível, na realidade brasileira, pelo espetacular aumento de pessoas encarceradas e pelo profundo caos do animalesco sistema prisional” (CARVALHO: 2013; p. 83). E isso não muda. A massa pede. É instada a crer que deve pedir. Pedem todos. Pedimos juntos sem muitas vezes nos darmos conta se que o senso comum cativa. É reconfortante. É fácil. Daí a necessidade do despertar do sono. Reconhecem-se as dificuldades da virada. Não há respostas prontas ou fáceis. Mas o giro é necessário. Avançar. Ir além. O filósofo do martelo ensina:
O que se tem, porém, em plena vigência e com amplo aceite, é o espetáculo que é tão bem trabalho, exposto e denunciado em Black Mirror – não apenas em Black Museum, mas também com a crítica presente em episódios anteriores, como por exemplo em White Bear (ver aqui). Enfim, o Black Museum não constitui retrato do passado ou do futuro, mas principalmente do presente. André Luis Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Mestrando em Direito – UNINTER Especialista em Direito Penal e Processo Penal Advogado Criminalista Professor de Direito Penal e Criminologia - UNIOPET. Paulo Silas Filho Professor de Processo Penal Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução de Jean Melville. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2003. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Genealogia da Moral. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2017. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. Comments are closed.
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